spoiler visualizarRenan578 06/02/2024
Em A Tirania do Mérito, Michael Sandel imerge em uma desafiadora, mas elucidativa compreensão decorrente das garras da meritocracia tão presentes em nosso tempo. O ponto de apoio para a análise é a reação populista direcionada às elites, principalmente como ocorreu na eleição de Trump e no referendo do Brexit.
A obra navega por raízes históricas do mérito, as quais foram abordadas sob diferentes perspectivas, mas principalmente atrelada a elementos religiosos. E é herdando a ética puritana do trabalho, que os Estados Unidos transformaram-se em um epicentro da era meritocrática no mundo.
O livro, a cada capítulo, sempre evoca questões acerca de como somos influenciados por ideias dominantes advindas da retórica da ascensão: "você consegue, se tentar", "até onde seus talentos e trabalho árduo o levar". É traçado um comparativo principalmente entre os anos 1940-1980 e os anos 1980-2020 sobre como as elites liberais governaram os EUA. Pouco a pouco, a infiltração dos valores tecnocráticos corroeram a dignidade do trabalho, o que afeta diretamente sensibilidades cívicas e a noção do bem comum.
Muito embora o autor ressalte a expansão dos direitos civis, notadamente raciais, o autor demonstra que nas últimas décadas está cada vez mais difícil ascender dos níveis inferiores de classe. Ou seja, ainda que a propaganda de que o sistema norte-americano é louvado em propiciar liberdades para ascensão, na prática o difícil acesso a universidades de elite, a restrita participação na democracia por pessoas com credenciais, aumento das desigualdades de renda e riqueza, ilustram a dura separação entre classe trabalhadora e a elite.
A expansão desenfreada da globalização, a qual traz consigo valor de mercado em detrimento do valor moral, ameaça quem permanece embaixo. Gera arrogância entre os "vencedores" e humilhação entre os "perdedores". Desvirtua a noção de formadores e produtores na economia, tendo em vista a obsessão em maximizar o PIB. O quanto um indivíduo contribui para a sociedade não é, em justa medida, recompensado pelos seus ganhos.
Não bastasse a questão do enfraquecimento do trabalhador, que direciona suas raivas como manifestado em reações populistas, xenofobia e racismo, o tópico de acesso às universidades também é abordado com força no livro. O aluno do terceiro de ensino médio convive com duras rotinas de estudo para preparação ao SAT, superproteção da família, motivados pelo medo de decaimento do estigma social. Por mais que o acesso a universidade, de modo geral, tenha aumentado nos últimos anos, as melhores universidades (Harvard, Yale e Princeton) concentram pouquíssimos alunos das camadas mais pobres.
O autor, tendo em vista a exposição crítica ao modelo vigente, sugere alternativas para mirarmos a mútua solidariedade entre os cidadãos, fortalecendo as noções do coletivo. Volta para filósofos do começo do século passado, como o liberal de livre mercado, Hayek e o liberal de bem-estar social, Rawls, que embora tenham visões de mundo antagônicas, já vislumbravam a questão delirante do mérito como representante do valor moral. Nos dias de hoje, Sandel pouco enxerga mobilização dos democratas para compreender assertivamente a fonte de ódio que desencadeou a polarização: muito embora prometam mais igualdade de oportunidade, na verdade desconsideram componentes essenciais que partem da população, a qual sente sua perda de poder e fracasso no jogo. Os liberais veem mais a necessidade das políticas de justiça distributiva, sendo que a priorização em justiça comutativa pode atentar-se para ressignificarmos o panorama meritocrático.