Art 17/06/2023
A ameaça do cotidiano por uma visão construtivista
Berlim é uma coletânea de quase 600 páginas e que representa um trabalho de vida do autor, Martin Lutes, levando 20 anos até sua conclusão. A obra registra o período histórico entre guerras até a chegada ao poder por parte dos nazistas (1928-1933). O autor se utiliza de eventos históricos com elementos fictícios mais atrelados aos personagens. Por exemplo, grande parte deles realmente existiram e atuaram dentro daquele contexto, mas não necessariamente agiram do modo como está registrado na narrativa. Sua maioria também é nomeada e retratada em homenagem a ativistas, jornalistas e artistas em geral que veridicamente fizeram oposição pública aos nazistas. Em outras palavras, o contexto é, então, representado por eventos históricos e figuras reais (desde os políticos até os veículos de comunicação), mas não retratados de forma fiel.
O interessante aqui é que os acontecimentos não são contados por um único ponto de vista, mas por vários deles. A realidade em tempo real e sua mudança constante é vista aos olhos do jornalista pacifista, da militante comunista que perde sua infância, da família judia, do músico estadunidense negro, da dançarina de cabaré, do anticomunista (que nem sabe o que isso significa) e nazista, entre muitos outros. Todos os pontos de vista à ascensão nazista são retratados: do apoio e ignorância à resistência e antagonismo.
A parte ilustrada dos indivíduos ocorre de forma intercalada e muitas vezes acaba por vir de encontro com a de outro. É mostrada a mistura de diferentes universos numa mesma cidade, assim como uma moral de que cada um deles não faz a ideia de quem o outro é e o que passou (coisa que apenas quem lê sabe). Essa é uma proposta base da HQ. De certa forma, pode-se afirmar que Berlim não tem como protagonista um indivíduo em questão. A protagonista, no caso, é a própria Berlim e tudo que a engloba. Com isso, as histórias mostradas não ganham o papel de serem paralelas a algo, mas justamente ser pertencente ao todo, ao contexto histórico.
Observando a construção da obra, três elementos centrais podem ser destacados: o cotidiano, as identidades e as percepções. Há uma abordagem construtivista no modo com que esses elementos contribuem para a formação e perspectiva pela qual a história é mostrada. É pelo cotidiano que surgem as percepções e demonstrações de mudança e do quanto algo hoje tratado como inimaginável-impossível pode se tornar possível, uma ameaça, no amanhã. Exatamente nessa condição, a ascensão nazista é retratada como algo banal que se transforma em uma ideologia que toma o poder e o pensamento público dominante. Ainda, o cotidiano serve para demonstrar a passagem de tempo e como um evento impacta indivíduos de um mesmo espaço físico de formas distintas, assim como suas percepções e enfoques serão diferentes. Uma cena que ilustra essa subjetividade é quando um homem e uma mulher, conversando sobre o fim da primeira Guerra Mundial, se lamentam por motivos distintos. O homem, alegando estar envergonhado, reclama da falta de ímpeto do exército para continuar lutando; A mulher, em dores, pelas quase 2 milhões de mortes no conflito (apenas na Alemanha).
Nesse sentido, a abordagem construtivista recebe muito mais um papel de retratar, por meio das distintas identidades, o período histórico do que de propriamente explicar. Junto com isso, a subjetividade passa a ganhar importância na forma de ver como cada um age e em como devidas interpretações por essa decorrência pode ser brutalmente perigosa.
Algo diferente também feito pelo autor é o destaque dado a figuras pouco representadas quando o tema em questão é abordado, apresentando um maior foco sobre agentes da sociedade civil. Também ocorre o resgate dos feitos revolucionários de Rosa Luxemburgo, elucidada em diversas citações, e de Ernst Thälmann (líder do KPD, Partido Comunista da Alemanha), figuras de suma importância e que deveriam ser até mais abordadas na educação base. Mas, de forma conjunta, também aparecem outras figuras menos conhecidas que atuaram diretamente em oposição ao reacionarismo. Além disso, mas não menos importante, há a citação de figuras do campo artístico que não são propriamente personagens, como o caso do pintor Frans Masereel e de John Heartfield. No caso do último, está presente nas páginas finais uma fotomontagem crítica ao fascismo. Ambos os artistas eram anticapitalistas e usaram suas artes para criticar também o nacionalismo presente do pós primeira guerra.
O resgate dessas figuras pouco conhecidas fora do imaginário alemão do século XX (e olhe lá!!) é tão profundo e bem trabalhado que chega a espantar quando é revelado que o autor é um estadunidense.
Mesmo consumindo alguma obra sobre determinado contexto, é praticamente impossível presenciar, sentir e saber o mesmo que alguém que lá e viveu. Não estando de verdade naquele contexto e tendo em mente essa impossibilidade, Martin Lutes transforma sua obra em uma representação histórica de um ponto de vista construtivo. Os antagonismos, sentimentos, pensamentos e representações daquela Berlim são reimaginados por meio de suas ilustrações do paisagismo gente de Berlim, assim como reforça as ameaças da banalidade do ódio reacionário pelo olhar cotidiano.