Carous 05/02/2022Gostaria de socar a cara do meu eu passado e me chutar até todos os ossos estarem quebrados por ter querido ler este livroO livro tem seus pontos positivos. Porém agora, enquanto escrevo a resenha não sei se decisões acertadas num livro tão decepcionante é algo bom mesmo ou desperdício.
Não há como negar a diversidade étnica e racial no livro. No entanto, parece que Charlie é a única adolescente gorda na escola e umas das poucas pessoas gordas na cidade. A raridade de moradores gordos na cidade é visto quase como peculiar. Isso me soa bem impossível, ainda mais nos Estados Unidos. Mas, vamos voar.
O ponto de Crystal Maldonado é mostrar o ostracismo que as pessoas gordas enfrentam - que de fato existe - e ela o faz isso mesmo que tenha que exagerar.
Apesar de achar que a autora forçou algumas situações para realçar a gordofobia diária e naturalizada que Charlie sofria, eu gostei da escrita dela. É fácil se deixar levar por ela.
Além disso, ela conseguiu reproduzir a comunicação jovial muito bem sem ser daquela maneira adultos-se-passando-por-jovens-e-imaginando-como-eles-falam que de cara tiram a legitimidade do texto.
Se tive problemas para avançar nas páginas e demorei mais do que previ para terminar o livro, não foi por causa da escrita da autora e sim pela sensação de que não havia história para contar.
Porque o que tirei da leitura é isso: Crystal Maldonado queria escrever um livro sobre uma garota gorda porto-riquenha e assim o fez. Não tem mais nada no livro.
Charlie >sequer< é porto-riquenha! Ela nasceu nos Estados Unidos, filha de mãe branca e pai - aí sim - porto-riquenho. Mas ela nunca comentou a raça do pai e latinos podem ser brancos também (um detalhe que Crystal Maldonado não se atentou).
Ela perdeu contato com a cultura de Porto Rico após a morte do pai, não é próxima dos parentes paternos, não sabe espanhol. Só os temperos e a comida multicolorida parecem fazer falta para ela.
Mas quando é conveniente para Charlie, ela joga um
"mi Papi" na roda sem contexto algum e se acha A latina no meio de brancos.
No mínimo ela é birracial - e a vivência de birraciais difere um pouco de quem não é, ainda mais no país que a história se passa -; no máximo, ela é uma cínica.
A culpa, é claro, não é da personagem, e sim da autora. Esse artifício me pareceu levemente ofensivo e oportunista. Há outras passagens no livro que reforçam a má impressão, mas não entrarei nessa questão.
Deixando de lado o uso dúbio da representação latina, o fato de Charlie ser gorda é o começo e o fim da existência dela.
Eu achei que fosse me identificar com os sentimentos dela por causa do peso, algumas inseguranças, as dificuldades para comprar de roupas, etc porque sou gorda e fui uma adolescente gorda, mas sou mais que isso. Charlie, não. A história dela girava em torno do peso. Ela gostava de escrever porque era gorda e ninguém duvidaria da sua capacidade. Ela não tinha amigos porque era gorda. Ela era boa aluna porque era gorda.
Gorda.
Gorda.
GORDA.
Todo seu ser é GORDA.
Jesus, como isso foi pobre!
Tanta coisa para abordar, tanta faceta que ela podia mostrar e a autora se limitou a uma coisa.
Não me conformo com a oportunidade perdida dela abordar a gordofobia internalizada da mãe de Charlie, uma mulher que foi gorda no passado, mas emagreceu. Apontar que apesar das duas estarem em lados opostos da balança, ambas tinham questões com peso. Enquanto Jeanie vivia à base de shakes tamanho era seu medo de engordar de novo, Charlie adorava
junk foods. No fim das contas, nenhuma das duas tinha uma alimentação saudável apesar da diferença de tamanho dos corpos delas.
Então a mensagem que Crystal Maldonado quis passar da não relação entre sobrepeso e saúde se perdeu porque não se aplicava a nenhuma das duas personagens.
A mãe de Charlie é só uma mulher horrível e insuportável que maltrata a filha.
A única personagem realmente bacana do livro é a melhor amiga, Amelia. Brian também é legalzinho, mas depois que ele e Charlie se acertam, o romance passou de fofo para sem graça. E o personagem parecia existir apenas para bajular a namorada e apoiar todas as suas decisões - por mais ridículas que fossem.
Mas Amelia merece o título de melhor amiga. Ela também merecia uma amiga melhor ao invés de uma que a inveja secretamente por ser magra e é extremamente autocentrada (em ser gorda) como Charlie.
Aliás, mais um tropeço da autora. Para Charlie, a única dificuldade na vida de alguém é ser gorda (nesse ponto ela esqueceu totalmente da sua metade porto-riquenha). Eu relevaria esse pensamento egoísta e limitado se ela não estivesse rodeada de colegas que enfrentam preconceito. Outros, que não gordofobia, já comentei que ela é peça única na escola.
Amelia é preta e queer, Brian descende de coreanos e tem duas mães lésbicas. Outros alunos no círculo de amizade de Charlie são da comunidade LGBTQIA+, mas pra ela ninguém sofre de verdade porque são magros e aí tudo é mais fácil.
Como uma mulher preta, queer E gorda eu quis voar na jugular de Charlie. Como alguém pode ser tão obtusa assim?
De novo, reclamo da personagem, mas o erro está na abordagem feita pela autora. Tudo isso me fez lembrar da Gina Rodriguez, uma atriz militante pelas oportunidades e melhores salários das atrizes latina >>brancas>em Hollywood convenientemente ignorando as dificuldades duplas ou até triplas das atrizes latinas negras ou atrizes não brancas no geral.
Como vi numa resenha, as primeiras 50 páginas são as melhores (foram o que grudaram no livro, na verdade), e parece que há algo para ser contado, mas logo a história despenca para um monte de cena avulsa e desnecessária que comprova que a autora não tinha ideia de como preencher as páginas da história da garota latina e gorda que ela queria contar.
Por fim, é muito triste que Charlie passa a se aceitar por causa de um garoto. Não é uma mensagem bacana para transmitir. Principalmente Charlie sempre teve Amelia ao seu lado apontando suas qualidades, encorajando e apoiando a amiga, mas ela só acreditou nisso quando Brian repetiu o mesmo discurso da melhor amiga.
Que bom que histórias que trazem protagonistas foram do padrão estão sendo escritas, mas não acho que esta é um bom exemplo disso. Fraca, cheia de erros. Gostaria de nunca ter pego o livro pra ler.
Foi mal aí pela resenha-textão, mas era muita coisa que eu precisava desabafar.