Che 17/01/2024
O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO PÓS-FORDISTA
Realismo Capitalista, do finado (e já adianto: saudoso) teórico cultural inglês Mark Fisher estava no meu radar há mais de dez anos. Sempre adiei a leiura em favorecimento de outras, o que se provou um equívoco principalmente se pensado na minha tese de doutorado (sobre representação simbólica da cibercultura no cinema), que tinha tudo a ver com o que acabei de ler.
Ainda assim, me pareceu um daqueles casos de leitura certa no momento certo. A análise de Fisher, que é também um manifesto papo reto sobre a esquerda fukuyanista - aquela do eterno "já perdeu", da auto-sabotagem e principalmente da capitulação - atinge em cheio o que eu já vinha também pensando há muitos anos, sobretudo por conta do golpe de 2016 no Brasil. E nos tempos de reinvenção significante da extrema-direita populista (Trump, Bolsonaro, Orban, Milei, etc), o fenômeno descrito por Fisher só parece ainda mais atual e sua compreensão, ainda mais pertinente. E em momento nenhum o autor se priva de ter uma postura combativa frente a essa fachada (artificial, idealizada) de "fim da história" que o neoliberalismo de fato consolidou, desde os anos 1980 até agora, com auxílio via de regra involuntário de quem só vê a política pelos moldes que o neoliberalismo quer que ela seja vista: exclusivamente nas vias institucionais e em ações de representatividade por indivíduos.
Fisher descreve o fenômeno do "realismo capitalista" de modo acessível, despojado mas sem perder a densidade. A estratégia escolhida pra isso foi a que melhor poderia falar ao coração e mente deste que lhe escreve: justamente a representação simbólica desse fenômeno na cultura de massa, em especial na sétima arte - exatamente o que eu passei onze anos da fazendo por ocasião da minha vida acadêmica, entre meados dos anos 2000 até 2016. O autor já começa com o pé na porta, logo no primeiro parágrafo aludindo ao excelente FILHOS DA ESPERANÇA (Children of Men), do mexicano Alfonso Cuarón. Essa estratégia de demonstrar o funcionamento da política conforme materializada no cinema (principalmente o comercial, de massa) torna o livro uma delícia de ler do começo ao fim, a ponto de eu ter lamentado quando acabou!
Felizmente, há na edição brasileira vários ótimos apêndices do próprio Fisher (cujo desfecho trágico em 2017 só torna sua análise mais atual) e um longo e acurado posfácio de autores brasileiros, que ainda esticam a maravilhosa experiência dessa leitura mais um pouco. O sabor de "quero mais", pra mim, é inevitável. O cara é um dos autores que mais me identifiquei na vida, inclusive em termos pessoais - embora, no caso dele, sua (auto-)análise tenha identificado sintomas depressão onde, em mim, identifiquei ansiedade como sintoma de mal estar na civilização pós-fordista.
O cenário descrito é de um homem da geração X vendo a rendição das duas seguintes (a Y e, por enquanto, a Z) a uma castração não só ideológica, como também libidinal frente ao reaganismo-thatcherismo - ou, se quisermos ser mais regionais, ao pinochetismo - que capitalizou o que veio após as queixas culturais dos anos 1960. As gerações a partir daí são uma incógnita, com o fim do zumbi neoliberal sendo iminente, porém eternamente adiado por uma direita imensamente difusa e uma esquerda capituladora (em ambos os casos, na escala global).
Se há algo a lamentar, é que o Fisher de 2009 (pelo que o pósfacio sugere, talvez depois nem tanto) tenha bebido na fonte dos franceses pós-estruturalistas - Deleuze, Foucault, Lacan, etc - passando infelizmente ao largo daquele que mais teria a lhe acrescentar: Louis Althusser, um sujeito deliberadamente ostracizado pela academia porque seu arcabouço teórico não é cooptável pelo identitarismo como os supra-referidos. A leitura de Althusser teria ajudado Fisher a fazer a certeira costura entre Marx e Freud - mais precisamente, entre ideologia e libido - que ele tanto em pareceu, por vezes, tatear no escuro encontrando só parcialmente o que buscava, principalmente quando versa sobre a necessidade da volta do desejo e pulsão de vida coletivos, para fazer frente ao individualismo.
Enfim, daria pra ficar ainda mais tempo versando sobre esse livro. Mas o melhor é mesmo te sugerir ler a obra inteira e tirar suas próprias conclusões. Me valendo dos arquétipos do filme brasileiro 7 PRISIONEIROS: se você é um Mateus, o livro te soará como uma bifa na fuça; se você é um Isaque, te surgirá como um oásis de companhia ideológica; se você for um Samuel, será uma necessária provocação pra você decidir pela pílula vermelha (aqui já me valendo de outro filme) ao invés de uma azul que persiste em se vender, dissimulada e artificialmente, como "única racionalmente possível".