Aione 18/01/2021Na Corda Bamba, de Kiley Reid, foi o vencedor na categoria Romance de Estreia do Goodreads Choice Award em 2020. Publicado pela editora Arqueiro no Brasil, conta com a tradução de Roberta Clapp.
Emira é uma jovem negra que trabalha como babá para a família Chamberlain, branca. Em uma noite, ela é abordada por um segurança em um supermercado, acusada de ter sequestrado Briar, garotinha de quem cuida. O incidente choca Alix, mãe de Briar e dona de uma marca de empoderamento feminino, porém Emira só quer deixar tudo para trás. Por não trabalhar com carteira assinada e prestes a perder o seguro desemprego, ela teme que a exposição acabe por prejudicá-la, ainda que Alix esteja disposta a tudo para fazer justiça.
Em terceira pessoa, os capítulos se alternam em narrativas que trazem as perspectivas ora de Emira, ora de Alix, o que é essencial não apenas na construção da tensão do romance, mas, principalmente, para contrastar duas realidades opostas. Isso fica claro inclusive na linguagem, muito bem adaptada na tradução, uma vez que o vocabulário de Emira e de suas amigas tende a identificá-las como um grupo de mulheres negras, diferente do empregado por Alix e seu meio social predominantemente branco e rico. De qualquer maneira, a escrita como um todo é ágil e envolvente e, aliada à própria tensão crescente, permite uma leitura voraz, quase impossível de ser interrompida. Li o livro em apenas um dia e senti todo seu impacto ao finalizá-lo.
Centrado em situações do dia-a-dia, Na Corda Bamba debate questões de classe e raça. O trunfo de Kiley Reid não está em simplesmente apontar o racismo sofrido por Emira em suas diferentes manifestações, mas como ele é compreendido — ou não — pelos brancos que o difundem. Ao trazer a perspectiva de Alix, o leitor tem acesso aos seus conflitos emocionais e às suas boas intenções, que ainda assim expressam o racismo sem que ele seja percebido. Dessa maneira, fica claro como esse é um problema estrutural, cujas aparições silenciosas são tão prejudiciais quanto às assumidamente declaradas.
Interessante observar, também, o caráter irônico utilizado na construção de Alix e dos demais personagens criticados na obra. A branquitude é muito bem representada, especialmente por suas contradições. Alix a todo momento se afirma como um tipo de pessoa e expressa sua ânsia em não ser como aqueles que ela repudia. Contudo, a forma como ela se porta com as filhas, a visão que tem do próprio corpo e muitas de suas atitudes aparentemente inocentes são componentes sutis — e críticos — que apontam para uma construção mais complexa, de uma individualidade arraigada em vaidades e privilégios que a aproximam justamente de quem ela condena.
A relação de Emira com Briar é um dos pontos mais emocionantes e encantadores da leitura, ainda mais em paralelo com a relação de Alix com Briar. As conclusões de Emira sobre isso, sobretudo ao final, são daquelas belamente dolorosas, não apenas pela óbvia carga sentimental da ligação entre as duas, mas também pela consideração social, impossível de ser retirada da equação. Importante dizer que Emira é uma personagem sólida, com desejos e conflitos próprios, muito mais do que apenas um objeto sobre o qual o racismo da história se manifesta. Enfrentando dilemas próprios de sua fase de vida — a transição para a fase adulta —, representa muito bem o quanto nem sempre é claro o que desejamos fazer, e como a pressão para se descobrir isso aumenta com as responsabilidades e cobranças batendo à porta.
Em linhas gerais, Na Corda Bamba foi uma leitura viciante e muitas vezes incômoda. Com personagens e situações complexas, sutilmente construídas a partir de um olhar sensível e afiado, é daqueles livros tidos como necessários, já que aborda de maneira tão acertada problemáticas de classe e raça, nem sempre percebidas, nas dinâmicas sociais.
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