Olhos de Sal

Olhos de Sal Carlos Machado




Resenhas - Olhos de Sal


1 encontrados | exibindo 1 a 1


Alexandre Kovacs / Mundo de K 24/10/2020

Carlos Machado - Olhos de sal
Editora 7 Letras - 116 Páginas - Coordenação editorial: Isadora Travassos - Lançamento: 30/05/2020.

A construção do mais recente romance do músico e escritor curitibano Carlos Machado é feita a partir de fragmentos de memórias, fotos e cartas que reconstituem um relacionamento amoroso abandonado no passado pelo protagonista, nomeado apenas como C., o qual, muitos anos depois, tenta o impossível resgate do tempo perdido em uma viagem à Suíça, país de origem da mulher com quem tinha feito planos de ter filhos. Nesta conexão entre a remota Obersteckholz e Curitiba, o autor mistura lugares, culturas e idiomas, ao lidar com uma história interrompida que, assim como tantas outras, ficou guardada apenas no silêncio de uma fotografia e naquela estranha e dolorosa saudade de tudo o que poderia ter sido.

No entanto, sabemos como a memória tem truques para nos enganar, principalmente quando ela vem à noite e espanta o que é racional, quando "incontrolável, o inconsciente comanda o que lembramos ou não, o que inventamos ou o que, de fato, aconteceu" e, assim, demonstra Carlos Machado uma rara habilidade ao nos induzir as mesmas dúvidas sobre o que é real e imaginário na mente de um personagem nada confiável ou, até mesmo, sobre os limites da autoficção.

Na tentativa de reviver o passado, o nosso solitário protagonista procura por antigos amigos do casal na Suíça, assim como os pais dela, contrariando as orientações que recebeu em uma carta de despedida (ler um trecho abaixo). No entanto, ele logo descobre que, no mapa das suas lembranças, nada pode ser reconstituído como na primeira vez. Acontece realmente a viagem que está sendo narrada ou o protagonista, na verdade, nunca saiu de Curitiba?

"Me torturo com o que poderia ter sido: como seria o nome dela? (Sempre achei que viria uma menina, de tanto que você falava). Eu penso em Marina: teria os cabelos encaracolados, só não saberíamos a cor, não é mesmo? Se puxasse mais para minha família, seriam clarinhos, mas se fosse de sua parte, escuros. Melhor se tivesse sido uma mistura mesmo, não acha? E como faríamos com os idiomas? Essa teria sido a melhor parte, não acha? Falaria em dialeto com ela, na escola aprenderia alemão e você falaria português. Uma bagunça! Mas que confusão bonita seria essa! Imagina ela indo para a escola e respondendo à professora em um idioma inventado (o mesmo que nós inventamos) e só em alguns anos saberia onde e com quem usar cada uma dessas línguas. Eu já a imaginava olhando para um objeto em alemão e pedindo para que pegássemos para ela em português. Que adorável seria! Só não a poderíamos mimar, como vi tantas por aí. Teria que aprender a cair e se levantar sozinha (será que conseguiríamos?)." (p. 29)

Olhos de sal marca o final da trilogia do Não-lugar e da qual fazem parte Poeira fria (Editora Arte e Letras, 2012) e Esquina da minha rua (Editora 7 Letras, 2018). O escritor e crítico literário Jonatan Silva resume bem o conceito da obra: "O não-lugar é todos os lugares. E é nenhum. A obra literária de Carlos Machado é a investigação dos espaços em branco, da invisibilidade – do personagem, mas também do autor – diante do todo. 'Olhos de sal' é o retrato certeiro desse impasse, o impasse beckettiano, em que a paralisia toma corpo como um movimento em falso – como se acometido da Síndrome de Bartleby, em que é sempre 'melhor não' – e revela uma experiência realista de ascensão e queda, porém, disfarçada de uma normalidade acachapante."

"Talvez ainda tivesse esperanças de que alguém fosse buscá-lo no aeroporto, mas há tantos anos. Como achar a mesma pedra de onde tirou a primeira foto na Bahnhof? Entretanto, foi com os olhos fechados, tateando aos poucos, sem falar com ninguém e desconfiou que estivesse no lugar certo. O mesmo ângulo, a mesma pose, os pés afundados na neve, a cabeça levemente para cima, a mão sem a luva encostada em uma das portas descascadas. Mas não tinha nenhuma mulher pedindo ajuda para descer as escadas com suas sacolas, ou um grupo de amigos passando por ele contando histórias. Escutava apenas o que ela dizia, em sua memória, sobre como queria a pose. / As fotos sobrepostas não revelam as mesmas possibilidades. Meses, anos, décadas depois. No melhor dos casos, confirmam que não se pode pisar no mesmo floco de neve duas vezes na vida. Teria que ter outra vida. [...]" (p. 43)

Sobre o autor: Carlos Machado nasceu em Curitiba, em 1977. É escritor, músico e professor de literatura. Publicou os livros "A voz do outro" (contos, 2004), "Nós da província: diálogo com o carbono" (contos, 2005), "Balada de uma retina sul-americana" (novela, 2006), "Poeira fria"(novela, 2012, Arte e Letra), "Passeios" (contos, 2016), "Esquina da minha rua" (novela, 2018) e "Era o vento" (contos, 2019, Editora Patuá). Tem contos e outros textos publicados em diversas revistas e jornais literários, participou das antologias 48 Contos Paranaenses, organizada por Luiz Ruffato e Mágica no Absurdo, organizada para o evento Curitiba Literária 2018, curadoria de Rogério Pereira, além de outras antologias de contos. Integrou a lista de finalistas do concurso Off Flip 2019 com o conto "Renúncia".
comentários(0)comente



1 encontrados | exibindo 1 a 1


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR