Toni 28/01/2021
Leitura 05 de 2021
Cidadã [1986]
Claudia Rankini (Jamaica)
Jabuticaba, 2020, 184p.
Trad. Stephanie Borges
‘Cidadã’, da jamaicana Claudia Rankini, traz como subtítulo “uma lírica americana”. Na acepção clássica, a lírica consiste na expressão de um estado de alma e difere de seus irmãos (o Drama e a Épica) porque *tende* a manifestar, com certa pretensão imediatista, a vivência de um Eu em seu encontro com o mundo. Ao aproximar o gênero do gentílico, Rankine marca a primeira subversão das muitas que seu texto irá propor, convidando a perceber esta lírica enquanto expressão de um grupo. E já na primeira página do primeiro capítulo, outra quebra significativa: o ensaio-poema-manifesto é escrito na segunda pessoa. You (que no inglês pode ser tanto “você” quanto “vocês”) é a voz lírica dominante.
É importante notar nesse onipresente “you” a negação do que significa ser um corpo negro no mundo: sem subjetividade, sempre um coletivo, sempre um estereótipo, sempre uma massa amorfa, um outro distante do eu -- você -- injustificado e incompreensivelmente raivoso. Logo, perigoso e, vezes sem conta, desacreditado. O corpo negro, corpo-alvo da necropolítica e corpo-incômodo da branquitude conivente, se desdobra em vozes e experiências do racismo cotidiano, recreativo e assassino nesta lírica de um estado de exceção que fabrica não-pertencimentos. Uma cidadania que depende de comentários invalidantes como “Era só brincadeira”, “Eu ouvi o que acho que ouvi?” e “Você tem certeza?”, por ex. Um corpo que luta todos os dias contra o “peso da inexistência” e sabe que “Todas as nossas histórias febris não vão instilar descobertas, / Não tornarão um corpo consciente, / Não tornarão um corpo consciente, / Não farão aquele olhar / nos olhos dizerem sim, embora não exista nada / a resolver / mesmo quando cada momento é uma resposta”.
Traduzido por Stephanie Borges, Cidadã é um amálgama de registros muito bem articulados (fotografias, roteiros de videoinstalações, capturas de frames, elegias, pinturas e peças de artes) sobre as técnicas diárias de entrincheiramento e anulação de culturas e indivíduos de cor nos EUA (mas sabemos como vale para o Brasil). Leitura que recomendo demais nesta edição primorosa da Jabuticaba.