Toni 16/01/2021
Leitura 52 de 2020
Meu corpo ainda quente [2020]
Sheyla Smanioto (SP, 1990-)
Nós, 2020, 120 p.
Tudo em 'Meu corpo ainda quente' arde, do rubro das páginas ao solo sangrento da fictícia Vermelha, cidade onde a ditadura civil-militar brasileira regurgita vítimas. Um fogo que purga e recria o universo da narradora Jô, voz-abismo herdeira das fúrias que suam, sangram e lutam num mundo em que “mulher nenhuma tem o próprio Corpo” e é preciso esconder-se num canto de si cada vez que os homens roubam um pedaço de sua Alma. O romance é a jornada arquetípica dessa mulher em brasas, conto de fadas fantasmagórico de uma busca pela retomada do que é seu.
Associada à ditadura, a atmosfera do romance recende a violências que contaminam o imaginário, a vida social e as relações afetivas. Violência entorpecedora capaz de tolher vidas, sentidos e sonhos. Mas é também um espaço rapsódico no qual um mesmo conto parece se repetir, só que sempre com pequenas alterações que carregam mudanças inexoráveis. Cada “era uma vez” desta história reverbera, na verdade, futuros. Como cartas de um tarô, há certas frases que percorrem “Meu corpo ainda quente” e se repetem, embaralhadas, redesenhando destinos, ocultando respostas, acalentando enigmas, ensinando resiliência.
Na trilha dos espaços míticos da literatura, Vermelha nos faz pensar numa Comala, como se a cidade-fantasma de Pedro Páramo sempre houvesse sido o mundo de todas as mulheres. Aprisionada nesta (nossa) realidade onde ser mulher “é falar a verdade e sentir que está mentindo”, onde não é possível discernir “qual parte de uma Mãe é sua verdade e qual parte é sua vontade de sobreviver”, onde não existe escolha e a dor precisa ser encarada como uma bênção, Jô aprende a reescrever com o Corpo, o Sangue e a Alma palavras de um feminismo arcano transformador.
Como diz a narradora de ‘Mulheres empilhadas’, ‘Quando uma mulher morre sua história deve ser contada e recontada mil vezes’. O fogo que escreve ‘Meu corpo ainda quente’ tem o nome de cada mulher interrompida pelo patriarcado e, por isso mesmo, o livro de Smanioto nunca vai parar de arder.