Ludmilla Silva 24/10/2022"I realized quite quickly that people hate being called racist more than they hate racism itself."Eu não tenho outra palavra para descrever esse livro a não ser "fenomenal". Eu esperava ler um livro Young Adult mais descontraído, simples e apenas focado no mistério de quem seria o "Ace of Spades", apenas uma vibe gossip girl. E no fim fiquei feliz ao descobrir que o livro é muito mais que um mistério superficial e raso. Ele joga críticas sociais na nossa cara a todo o momento, e o racismo não é apenas uma característica de segundo plano e sim algo que move toda a história de um jeito que nos deixa boquiabertos e revoltados a todo o tempo.
Imaginei logo no começo que o Ace of Spades seria um racistinha covarde, mas não estava esperando de verdade descobrir que não era apenas UMA pessoa por trás daqueles ataques nojentos e cruéis e sim todo a escola e basicamente toda a sociedade. O que parando para refletir melhor faz todo o sentido. Não existe de fato (pelo menos que saibamos) um grupo real e prático, como no livro, que destrói a vida de adolescentes negros em seu último ano na escola. Todavia, essa é uma metáfora perfeita para como a sociedade atual trata as pessoas negras, principalmente aquelas bem-sucedidas ou que estão no caminho para se tornarem bem-sucedidas.
A sociedade é construída de modo a impedir que as pessoas negras tenham acesso a lugares que são delas por direito, então é comum — e, ao mesmo tempo, triste e revoltante — que elas não se sintam pertencentes a algum lugar. Este é o caso de Devon e Chia, que tinham todo o direito de estar naquela escola de elite, mas ainda se sentiam como intrusos e outsiders. Além disso, a sociedade, e o próprio racismo estrutural nela contido, contribuem para que as pessoas negras não ocupem espaços e ainda mais posições que elas mesmos conquistaram e lutaram a vida toda para alcançar.
E aqui no livro esse racismo é exemplificado por esse evento grandioso, por essa seita orquestrada (quase como o illuminati) que impede o sucesso de Devon e Chia a todo o custo. Seria fácil se fosse de fato assim, se conseguíssemos avistar o inimigo tangível com nossos próprios olhos, mas sabemos que não é assim que funciona a violência estrutura. Esse livro me fez refletir bastante, pois existe a emoção do mistério e da pessoa por trás daquelas ações, mas sabemos que essa injustiça social e essa covardia não fica restrita apenas as páginas do livro, elas são um claro e perfeito reflexo da nossa sociedade. E isso fica ainda mais obvio com a explicação da autora no final, onde ela explica os motivos e inspirações para essa história tão concisa e genial.
Outro ponto que gostei bastante foi esse contraste entre os dois protagonistas. Para aquele universo do livro, e inclusive para o nosso, a suposição é de que o Devon e a Chiamaka seriam iguais apenas por ambos serem negros. "Como possuem o mesmo tom de pele, eles provavelmente possuem as mesmas experiências e vivências" e honestamente que maravilha perceber as principais diferenças e contrastes entre os dois personagens.
A Chiamaka foi uma personagem que tive mais dificuldade de me conectar no começo, mas ao longo das páginas passei a entendê-la melhor e a ter mais empatia por ela. A Chia é aquela personagem que no início tenta negar suas origens e quem ela é, ela tem um pai branco e estadunidense, ela é rica, estuda em uma escola de elite branca e seus melhores amigos e namorados também são brancos. Então para ela é fácil negar sua negritude, sua descendência nigeriana e quem ela é de verdade, justamente pelo meio a qual ela está inserida. E para os seus amigos brancos também é fácil negar isso quando ela está sempre com o cabelo alisado, com uma roupa da moda e quando ela praticamente imita todos os trejeitos e manias dos brancos.
O baque maior para Chiamaka vem quando ela percebe que não importa o que ela faça e o quanto tente se misturar, ela nunca será uma pessoa branca. E para mim a força da personagem vem desse momento, dela abraçar quem ela é, dela começar a valorizar sua própria família e suas amizades e não tentar se encaixar em uma realidade onde ela não é bem-vinda e onde ela, no fundo, nunca gostou. Para mim, as cenas onde ela deixa de alisar seu cabelo e começa a abraçar seu cabelo natural são muito poderosas. E amei ainda mais a personagem quando ela se desvinculou dos outros e cultivou uma personalidade única e própria.
Em contraponto, a vida de Devon está longe de ser fácil como a de Chia. Os seus pais não são presentes, o pai foi preso e a mãe trabalha horrores para conseguir manter a família; ele vem de uma família pobre que luta para ter o básico, o que incentiva Devon a se envolver com coisas erradas justamente para tentar aliviar o peso nas costas da mãe; ele mora na periferia, em um bairro perigoso, significando que ele não está sujeito a ser quem ele é — um garoto gay — por medo de represália. Eu me simpatizei bem mais com Devon do que com a Chiamaka, pois a vida dele é extremamente difícil, triste e solitária. Quando pensamos que ele está no caminho certo para sair desse sofrimento, descobrimos essa seita racista que planeja deixar a vida dele ainda mais insuportável.
Gosto desse contraste, pois a autora não generaliza as vivências de uma pessoa negra, obviamente elas se diferem, pois os contextos sociais, políticos e econômicos também são. E isso é o que traz a riqueza da narrativa, pois independentemente de você ser uma pessoa negra, rica ou pobre, heterossexual ou queer, você continua sofrendo as mazelas do racismo estrutural na sociedade. Não é como se as pessoas brancas no geral quisessem aceitar uma pessoa negra mais do que outra.
Tive essa visão bem reflexiva e crítica do livro, não sei se todos irão concordar comigo, mas, a meu ver, não é um livro de distração e divertimento. Ele tem todo um caráter de mistério, aventura e às vezes até de ficção, mas é apenas uma forma rica e certeira de denunciar o racismo na nossa sociedade. Penso que foi uma decisão extremamente acertada da autora de inventar essa narrativa para descrever o que ela sentia e ainda sente como uma mulher negra na sociedade atual.
As discussões sobre raça, orientação sexual, classe, racismo estrutural, etc. são muito bem aplicadas, e isso me deixa feliz, pois um livro desse consegue atingir bem mais pessoas do que, por exemplo, um livro de teor jornalístico e acadêmico. Espero que pelo menos alguns dos leitores reflitam sobre os temas aqui contidos e tentem fazer algo a respeito, principalmente se estiverem em posições de privilégio e poder. Gostei demais e não vejo a hora de ler mais histórias da autora, Faridah Abike-Iyimide.