Andreia Santana 15/01/2022
...porque ser humano dói
Um livro sobre as muitas tristezas da infância, a melancolia da adolescência e a solidão dos cães domésticos, que é, muitas vezes, um espelho e extensão do desamparo dos seus donos. A liberdade negligente dos animais de rua e o peso da matilha que enlaça e acolhe, mas anula o indivíduo, estabelece uma hierarquia, não permite desobediências à ordem social.
É sobre o quanto a violência gera ainda mais violência, de ações ou sentimentos, contra outras criaturas e contra si mesma, com muito mais potência do que a capacidade da gentileza de se multiplicar.
O romance com traço autoficcional de Júlia Grilo, escritora baiana de 21 anos, nascida em Salvador e criada na cidade de Amélia Rodrigues, no recôncavo baiano, é sobre o que há de humano nos cachorros e sobre como nós, humanos, temos comportamentos caninos, lupinos... domesticados, mas um pouco insubmissos, o suficiente para não sufocar.
Mamíferos que somos, gerados e paridos - e tanto parir quanto nascer são experiências difíceis. Crescer é ainda pior -, primatas que abdicaram da natureza, mas que ainda tem seus tributos à pagar ao instinto selvagem.
Quem nunca mendigou afeto com olhos pidões e sentiu o estômago borbulhar ao receber migalhas de atenção, como aqueles cãezinhos de tutores sempre ocupados e estressados? Quem nunca sentiu a fera à espreita sob o manto da razão e das convenções sociais?
Em seu pequeno e poderoso livro (são pouco mais de 150 páginas), a autora conta a história da cadela de sua infância, Cafeína, que deseja tornar-se humana, ao mesmo tempo em que revisa a própria vida, ainda curta, mas intensa, rica internamente, pulsante e dramática, como é a vida de quem descobre o paraiso e o inferno que é o ato de escrever sendo ainda muito jovem.
É um livro sobre como ser uma cadela na matilha se assemelha, muitas vezes, com a posição das mulheres na sociedade. Sobre perdoar-se e perdoar as nossas mães, e as mães delas, nessa teia de ancestralidade que nos emaranha e define.
Um romance que conta de sonhos desfeitos, refeitos, rarefeitos. Que aborda o amadurecimento e seus aprendizados, alguns que dilaceram para depois remendar.
Cães (Editora Penalux, 2021), tem a orelha assinada pela cartunista Laerte Coutinho e o prefácio é de Wagner Teles. É o romance de estreia de Júlia Grilo que estuda Psicologia na Universidade Federal da Bahia (Ufba). Foi iniciado durante um processo de luto da autora. Sua cadela Cafeína estava com câncer, morrendo. O livro funciona como homenagem, catarse, mea culpa, despedida de um afeto difícil entre menina e cachorra, entre uma jovem mulher e sua infância e adolescência. Júlia olha para dentro, como futura psicóloga, para decifrar o que está fora.
É um livro sobre cruzar fronteiras, lançar-se ao mundo, ir e voltar, sobre términos e recomeços, se for preciso recomeçamos quantas vezes forem necessárias, teimosos esses humanos, bem mais que resilientes. Sobre o limite da realidade e do delírio.
Sobre crescer e adolescer como mulher negra, em uma cidade pequena de interior, em uma família convencional, em um mundo racista, com uma irmã branca. Sobre as dores ocultas das famílias multirraciais brasileiras, as heranças não ditas da escravização, sobre essa coisinha delicada que se chama autoestima, sua ausência, a busca, a construção da estima por si.
Este é um livro para se ler com a sensibilidade à flor da pele, porque é assim que a autora parece tê-lo escrito. Reflexivo, filosófico, agridoce. Ora pesado e sombrio, ora ingênuo e delicado. Remexe nas entranhas, desperta memórias familiares, enternece e revolta, revolve, tumultua como redemoinho e apazigua a mente como a música certa que toca na hora que a gente mais precisa...
O exemplar que eu li:
É a versão em papel (foi lançado também em e-book), da biblioteca de minha irmã, que foi quem me indicou essa leitura, encantada que ficou pela autora e pela história. Escolhi abrir o ano com uma autora, baiana, muito jovem, e cheia de lições para ensinar...
Ficha Técnica:
Cães
Autora: Júlia Grilo
Editora: Penalux
155 páginas
R$ 42,00 no site da editora Penalux
site: https://mardehistorias.wordpress.com/