Otávio Augusto 05/01/2024Para além do Orwell romancista, há um grande ensaístaQuem pesquisar livros de George Orwell em qualquer site encontrará dezenas de edições abarcando a sua prosa ficcional e não ficcional. Já tendo lido 1984 e A revolução dos bichos, decidi me aventurar neste volume de ensaios. São quatro ensaios: "Por que escrevo", "Política e língua inglesa", "Livros vs. cigarros" e "O leão e o unicórnio: O socialismo e o gênio inglês".
No primeiro ensaio Orwell revela quatro principais motivos para se escrever: a vaidade, o entusiasmo estético, o impulso histórico e o propósito político. A vaidade está presente no desejo de ser bem visto por outros, tratado como um intelectual ou mesmo ser lembrado após a morte. O entusiasmo estético é o prazer advindo da percepção do belo em uma obra de arte, para além do utilitarismo. O impulso histórico é a vontade de preservar acontecimentos, impedindo-lhes o esquecimento. Por fim, o propósito político está relacionado com o impacto na estrutura da sociedade que a literatura pode causar.
Orwell confessa que em boa parte da sua vida escrevia pelos três primeiros motivos. Entretanto, após ter trabalhado na Política Imperial Britânica, tendo contato com uma hierarquia rígida e com a pobreza e miséria desumanas, começou a se politizar. De maneira que, após presenciar a guerra civil espanhola, bem como vislumbrar a ascensão de Mussolini e Hitler, sua literatura se voltou integralmente para a política. Sendo assim, ele deixa claro que literatura e política se misturam, logo um escritor que se oponha a isso já está fazendo uma opção política. Por mais que não concorde integralmente com essa opinião, é de se ressaltar a qualidade da ficção de orwelliana, que transforma magistralmente política em arte.
O segundo ensaio, Política e língua inglesa, é bastante atual. Trata-se de uma crítica aos chavões e lugares comuns da língua que são repetidas a ponto de se esvaírem por completo ou de terem seu significado distorcido conforme o interesse - muitas vezes político - de quem as usa. Palavras como democracia, nazismo, fascismo, justiça e igualdade já eram utilizadas com significados arbitrários em sua época, a fim de atender aos interesses da política. Dessa forma, há uma grande imprecisão das ideias transmitidas textualmente, além de um empobrecimento linguístico, tendo em vista que se utilizam expressões concebidas por outras pessoas, negligenciando-se o próprio pensamento do escritor. É quase impossível deixar de utilizá-las devido à sua presença em todos textos e noticiários - Orwell não conheceu o caótico palavrório das redes sociais - , o que nos obriga a sempre nos policiarmos ao escrever, investigando o uso de cada vocábulo. De brinde ele nos deixa seis dicas para escrevermos bem:
1. Nunca use uma metáfora, comparação ou outra frase feita que esteja acostumado a ver escrita.
2. Nunca use uma palavra longa se pode usar uma curta que signifique o mesmo.
3. Quando possível eliminar uma palavra, sempre elimine.
4. Nunca use a voz passiva quando puder usar a ativa.
5. Nunca use uma expressão estrangeira, uma palavra científica ou um termo de jargão se puder pensar em uma palavra equivalente em seu idioma que seja de uso comum.
6. Descumpra qualquer uma dessas regras antes de escrever algo que pareça estúpido.
O terceiro ensaio me foi o menos interessante. "Livros vs. cigarros" se resume a um breve cálculo do quanto se pode gastar com livros ou cigarros, de maneira a provar que, sem sombra de dúvidas, o motivo de se ler pouco não é o alto custo dos livros, mas a baixa atração que a leitura desperta nas pessoas, quando comparada a hobbies até mais caros, porém mais estimulantes. Talvez essa reflexão ´também valha para o Brasil do século XXI.
Por último, "O leão e o unicórnio: o socialismo e o gênio inglês" é um ensaio bem longo sobre patriotismo, política e revolução socialista. De início, Orwell caracteriza o povo inglês como um dos mais patrióticos do mundo, possuidores de uma cultura que, apesar de arcaica, é muito respeitada por todos, desde os operários da classe mais baixa até a aristocracia. Esse patriotismo deságua na xenofobia, que causa o alheamento do inglês à cultura externa, o que, em escala menor, traduz-se no desinteresse pela cultura estrangeira - idiomas, músicas, literatura e culinária - , e em maior escala, na ignorância política. Dessa forma, a insularidade da Inglaterra é vista como uma das causas da ascensão dos regimes totalitários no século XX, tendo em vista que o país foi conivente, direta ou indiretamente, com a ascensão da Espanha de Franco, da Alemanha de Hitler e da Itália de Mussolini.
Nessa perspectiva, Orwell desnuda a sociedade inglesa de 1940 - data do ensaio - e mostra o quão estratificada ela é. Se por um lado há banqueiros e aristocratas vivendo em palácios e casas de campo, jogando críquete e vivendo a base de rendimentos de fortunas transmitidas hereditariamente, sem precisarem trabalhar, há operários que jamais conseguirão se aposentar, fadados a viverem em condições miseráveis de emprego e de subsistência. É um País quase feudal.
Sendo assim, Orwell enxerga o socialismo como a única possibilidade da Inglaterra combater a ascensão de regimes totalitários e de conseguir modificar as bases de sua sociedade capitalista e desigual. Deveria ocorrer, então, uma revolução de baixo para cima, a partir da disseminação de ideias socialistas na massa da população, que seria responsável, consequentemente, por uma mudança na política do seu país. Apesar desse ponto de vista se mostrar equivocado para um leitor do século XXI, ele nos esclarece duas coisas até hoje muito negadas: George Orwell foi um intelectual de esquerda - não de direita - e sempre criticou regimes totalitários - não apenas o stalinismo.
Confesso que esse último ensaio talvez seja mais proveitoso para algum estudioso de história, mais especificamente um historiador do século XX, pois muitas informações e reflexões levantadas são muito particulares desse período da história da Inglaterra e do mundo. Ainda assim, tive muito proveito.
Quem já conheceu o George Orwell literato deve conhecer o ensaísta. Ler esses ensaios é conhecer a mente por trás desse gênio do século XX. Sem dúvida alguma, após a leitura dessa coletânea, poderemos fazer leituras mais aprofundadas de 1984 e A revolução dos bichos.