Vitor Cano 27/12/2021
O melhor até aqui com muitos "porém"
Esse é o terceiro volume da série "Dragões de Éter", escrita pelo autor brasileiro Raphael Draccon, que incorpora diversos elementos de contos de fadas a uma mitologia própria. Nesse volume, o autor expande o mundo de Nova Éther ao, finalmente, apresentar e explorar na história um mundo habitado por diferentes povos, culturas e mitologias. Em relação ao enredo, vemos a continuação direta dos eventos ocorridos no final do segundo livro, acompanhando os protagonistas apresentados ainda no primeiro volume (notadamente, Axel, João, Ariane e Maria), além de outros personagens que passam a ter maior destaque apenas no terceiro volume. A historia é contada a partir de capítulos, geralmente curtos, nos quais a narração as vezes dialoga com o leitor - como se o narrador fosse um bardo.
O que gostei:
Narração
Uma das coisas que mais me chamou a atenção na série é como o estilo e qualidade da narração não são constantes ao longo dos livros. O primeiro livro conta com uma narração que tenta a todo tempo interagir com o leitor com diálogos sem importância para a história. Isso tornou a leitura muito cansativa para mim. No segundo livro essa estratégia é abandonada, com uma narração mais focada na história, já apresentando o estilo de deixar ganchos ao final dos capítulos para prender o leitor. Com isso em mente, a narração do terceiro livro me agradou, pois traz novamente o elemento de interação, mas de forma comedida, sem atrapalhar o ritmo da história, com capítulos curtos que acabam tornando a leitura mais fluida. Um ponto negativo é que o autor abusou dos ganchos de suspense ao final dos capítulos. Eu não me incomodei tanto com isso, mas essa fórmula é repetida em praticamente todos os capítulos do livro.
Ritmo
Os dois primeiros livros possuem um problema muito grande de ritmo: a história é desenvolvida vagarosamente até que, subitamente, diversos acontecimentos importantes ocorrem ao final dos livros. Fica a impressão de que apenas o final do livro tinha importância para a trama. Nesse terceiro volume a história é desenvolvida com um ritmo mais equilibrado, com eventos importantes no início do livro desencadeando o desenvolvimento da história até alcançarmos o ápice mais ao final. Ponto positivo.
Expansão do mundo
A série começa com certa ambição de criar e nos apresentar um novo mundo de fantasia, adaptando e, por vezes, descontruindo contos de fadas tradicionais para compor sua própria mitologia. No entanto, o primeiro livro é muito contido e nunca consegue expandir bem a história para além de uma visão mais local daquele mundo. O segundo livro tenta expandir isso ao nos introduzir os diferentes reinos daquele mundo, mas toda a história se passa geograficamente no mesmo ambiente - em torno do campeonato de luta. Nesse terceiro volume, finalmente a ambição inicial parece ser retomada ao apresentar núcleos de personagens em diferentes locais e situações. Com isso, o autor consegue nos apresentar diferentes aspectos e povos daquele mundo, expandindo e concretizando (ou algo próximo a isso) o que nos foi prometido no primeiro livro. Nesse livro aprendemos mais sobre elfos, gigantes, piratas, bruxas, entre outros. Claro, ainda é um livro infanto-juvenil, então não espere nada muito complexo como uma Terra Média ou Westeros.
O que não gostei:
Personagens, motivações e encadeamento lógico (SPOILERS AQUI)
Alguns personagens da série se tornam completamente irrelevantes para o enredo, mas continuam tendo capítulos dedicados a eles como se fosse algo obrigatório. Isso é especialmente evidente no caso da Maria: tudo dela se resume ao fim do romance do Axel e as investidas de dois outros galãs que nunca chegam de fato a se estabelecer como um relacionamento romântico concreto. No entanto, outros personagens também vão sendo esquecidos ao longo da trama: Ariane vai aprendendo sobre magia, desenvolvendo suas habilidades mas nunca chega de fato a fazer algo impactante para história com seu dom. João é jogado de um lado para o outro, se torna escudeiro, passa por provas de lealdade, escapa da morte por conta de um pacto com um ser místico supostamente maquiavélico, ganha poderes, mas nada disso serve para movimentar algo importante na trama. Um dos personagens de maior destaque é o Axel, mas achei toda a questão do casamente dele bastante duvidosa - elfos não possuem a tradição do casamento então por que aceitariam fazer um casamento arranjado com um humano? Além disso, muitas questões que são apresentadas com um verniz de importância não são aproveitadas na história - por exemplo: o ser místico que faz o pacto com o João desaparece logo em seguida e nunca mais reaparece; personagens supostamente super poderosos são apresentados em um capítulo, como se ditassem os acontecimentos do mundo, mas nunca mais são citados na história; Axel está p*** pelo assassinato do Muralha, mas isso não tem nenhuma consequência (nem o assassinato, nem a raiva do Axel). Talvez essas questões sejam mais bem resolvidas no próximo livro.
Mensagem questionáveis (SPOILERS AQUI)
Esse é um ponto especialmente delicado, pois o livro é direcionado a um público mais novo, que muitas vezes pode ainda estar formando seus conceitos, valores e opiniões. Com isso em mente, o livro apresenta um relação maniqueísta muito clara, com um reino considerado bom e um império claramente malvado. Até aqui tudo bem, várias obras consagradas são assim. O problema é que os personagens considerados "bons" muitas vezes tem ações questionáveis que dentro do contexto do livro são consideradas plenamente aceitáveis. Dois exemplos, nesse sentido, que me incomodaram: (1) a decisão de iniciar uma guerra que necessariamente resultará na perda de milhares de vidas é facilmente resolvida quando um elemento místico-religioso é colocado em jogo, como se uma guerra santa fosse totalmente aceitável e justificada. (2) já durante a guerra, na única grande batalha que é descrita, o Rei da nação "boa" define, sem consultar nenhum dos comandantes, uma estratégia de batalha que consiste em propositalmente deixar parte de seu exército ser aniquilado para posteriormente ser transformado em mortos-vivos para atacar o inimigo. Isso garante a vitória e praticamente não há questionamento ético sobre a decisão do Rei, colocando como justificativa o fato de ele ter vencido a guerra dessa forma. Pode até ser que no 4º livro as consequências desses atos sejam apresentadas, mas considerando que houve um intervalo de mais de uma década entre a publicação do terceiro e do quarto livro, acho pouco provável que o autor tenha considerado o impacto dessas mensagens no seu leitor.
Adaptação dos contos de fadas
A mitologia do mundo de Nova Éther é um agregado de contos tradicionais, como Chapeuzinho Vermelho, João e Maria, Rei Artur, Peter Pan, etc, reconfigurado para criar a história desse mundo de fantasia. Pra mim há dois problemas aqui. O primeiro, que é mais uma questão pessoal minha, é que o autor, que é brasileiro, parece ter ignorado completamente as tradições e folclore nacionais em detrimento dos contos do velho mundo. Acho isso triste e uma oportunidade perdida. Eu sei que são coisas em níveis completamente diferentes, mas a história da Terra Média criada por Tolkien começou com a ambição do mesmo em criar/estabelecer uma mitologia para a Inglaterra/Reino Unido. Por isso, foi buscando os contos daquela região e os repensando para compor uma mitologia única - assim surgiu todo o plano de fundo de O Senhor dos Anéis. Obviamente eu não esperava algo com a mesma complexidade e cuidado do que foi feito durante toda uma vida por Tolkien, mas realmente me causa estranhamento que um autor brasileiro tenha se agarrado tão fortemente a tradições estrangeiras e não tenha valorizado mais as tradições de sua própria cultura. Como eu disse, isso talvez seja apenas uma questão pessoal minha, mas o segundo ponto de crítica sobre a adaptação dos contos de fada feita pelo Draccon é mais direto: não é uma ideia original, outros autores já fizeram isso e fizeram melhor. Eu gosto muito mais da forma como os contos de fadas são desconstruídos nos livros do Witcher ou de como são apresentados de forma mais épica e mística pelo Tolkien. No caso de Dragões de Éter, muitas vezes parece que o autor fica com medo que as pessoas não reconheçam o conto de fadas ao qual ele se remete, sempre trazendo alguma indicação pouco elegante para algo que já era óbvio (vide o nome do rei dos elfos).
Personagens femininas e romances
Eu deixei esse item por último, mas é uma das coisas que mais me incomodou na leitura. Eu não tenho tanta propriedade para discutir sobre isso, então serei breve. O autor é bastante antiquado em relação às personagens femininas, especialmente quando esta tentando desenvolver relacionamentos delas com personagens masculinos. Se um capítulo se inicia com um diálogo entre uma mulher e um homem, pode ter certeza de que você será presentado com uma frase do tipo "Fulana disse/fez/pensou XXXX, pois toda mulher faz isso". O tempo todo há esse tipo de generalização e geralmente com um forte teor machista. E o autor muitas vezes parece sentir que na verdade está valorizando a mulher - é como se fosse aquele tiozão que diz que não é machista, pois sempre vai proteger a mulher que é como uma flor delicada e precisa da proteção do homem. Os livros não são antigos a ponto de que se possa justificar esse teor machista por ser de outra época. Causa-me certa curiosidade de saber se esse tipo de abordagem permanece no último livro recentemente publicado, mas não tenho mais tanta vontade de seguir lendo essa série.