erbook 30/01/2024
A fome é um cocheiro sem ouvidos
“O homem é o único animal que sempre quer mais do que precisa. O homem é o homem porque quer mais”. Esse pensamento de Verissimo, sintetiza o pecado do excesso: a gula, tema principal de “O clube dos anjos”. Desde a Grécia antiga, a temperança é uma virtude louvável, mas os “anjinhos” do clube passam ao largo desse valor moral.
Essa obra é o terceiro volume da série “Plenos pecados”, lançado pela editora Objetiva em 1998. A editora convidou sete grandes nomes da literatura para escreverem a respeito de cada pecado capital. Dessa coleção, li também “A casa dos budas ditosos”, do saudoso João Ubaldo Ribeiro, que tratou do pecado da luxúria. Gostei de ambos os livros, cada um com seu estilo peculiar de escrita.
Abel, Tiago, Saulo, Samuel, Pedro, Paulo, Daniel, Marcos, João e André (que entrou no lugar do falecido Ramos), homens de meia-idade, formam a confraria gourmet intitulada “clube do picadinho”, em homenagem ao picadinho do bar do Alberi, onde frequentavam na adolescência. A alusão aos nomes bíblicos é compreensível, na medida em que todos pecam nos excessos gastronômicos, incidindo no teológico pecado capital da gula. Verissimo vai além e aborda outros temas existenciais relevantes nesta curta novela.
Logo na primeira página, o narrador Daniel informa que só sobraram ele e o cozinheiro Lucídio, após todas as misteriosas e repentinas mortes ocorridas supostamente em decorrência dos jantares maravilhosos que cada confrade oferecia aos amigos. O ritual era um jantar por mês. Apesar desse “spoiler” do próprio autor, a leitura é instigante e o final surpreende e apresenta importante dilema ético existencial.
Lívia, namorada de Daniel, exprime com crueza sua visão em relação ao grupo de amigos: “Um bando de fracassados e inúteis que nunca fizeram nada na vida a não ser se empanturrar e desgraçar a vida dos outros”. Depois de 21 anos de confraria, comendo e bebendo do melhor que a culinária pode oferecer, o clube foi arrefecendo e se desanimando, especialmente após a morte do Ramos. Nesse momento, Daniel conhece Lucídio num encontro supostamente casual na importadora de vinhos. Após ficar fascinado com a história do chef Lucídio a respeito de um clube secreto de gastronomia no Japão, onde se comiam o peixe fugu cru, sabendo do risco real de morte, Daniel não se contenta e o convida a realizar o jantar para o “clube do picadinho”, dando início a uma espécie de “roleta russa gastronômica” ou um “corredor da morte”, no qual o condenado teria direito à última refeição.
A leitura é saborosíssima, com direito a diálogos shakespearianos do Rei Lear.
Por fim, sugiro que também assistam ao filme “O clube dos anjos”, do diretor Angelo Defanti (2022), disponível no canal Tele Cine.