Trem errado para Barcelona

Trem errado para Barcelona Mariana Vilella e Renata Ferraz




Resenhas - Trem errado para Barcelona


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Marcos Milone 25/03/2021

Trem Certo para São Paulo
É peculiar ler um livro em que as autoras nasceram quando você tinha em torno da idade delas. A leitura fica duplamente gostosa. Você passa a buscar quais referências a geração dos seus sobrinhos tem em comum com as suas, e quais não. Mas passear pelas páginas de Trem Errado para Barcelona, da dupla Mariana Villela e Renata Ferraz, ainda me apresentou um outro desafio, nesse caso de foro íntimo. Identificar a autoria de cada texto, já que as escritoras optaram por não assina-los. E nem sempre isso é tão fácil. Mas, como eu conheço o estilo da Mariana, minha companheira de duas oficinas literárias, e alguns dos textos incluídos no livro foram lidos por ela nas aulas, a tarefa ficou um pouquinho mais fácil. Acho que acertei alguns, ao identificar nas entrelinhas seu humor único, angustiado e irônico.

Mas vamos ao que interessa. Trem Errado é um livro com mais de 60 crônicas/contos curtos que funciona como se fosse um diário e quase um diálogo, ambos bem aleatórios, sem grandes regras, entre os alter egos das autoras. Posso dizer assim? Ou seria melhor escrever “os personagens criados pelas autoras?” Por um mero acaso, no meio da leitura do livro, assisti ao filme nacional “Música para Morrer de Amor”, que traz os encontros e desencontros amorosos de três amigos nos seus 20 e tantos na cidade de São Paulo dos dias de hoje e mostra como a música realiza a poesia desses amores. O filme e o livro dialogam muito bem e o grande ponto em comum dos dois, além dos amores, é a presença da música na vida dos seus personagens, sendo que grande parte dessas músicas foram as que eu ouvi quando eu tinha a idade dos personagens. E é aí que se percebe a interceção entre as duas gerações. Por isso também, é muito fácil passear pelos contos de Mari e Rê, que mostram o cotidiano de duas amigas solteiras residentes na capital paulista, pertencentes à geração millennials, que estão chegando aos 30 anos, às voltas com doutorados, trabalhos, dates, crushs, WhatsApp/Instagram, comida saudável, ioga, vinho, música, shows de MPB, vida cultural, feminismo, sexualidade, política, viagens, enfim, vivendo o dia-a-dia extremamente atribulado de quem mora na megalópole que é São Paulo, no final da segunda década do século 21.

O conto “Rotina 1, 2, 3” é o melhor exemplo, quando a narradora conclui, ao analisar a agenda da semana, que poderá dormir “daqui a seis dias. Quem sabe cinco minutos aqui na privada”. Já as paqueras (acho que esse termo é velho, mas aqui assumo a minha geração) mal sucedidas são alternadas (e abordadas) traçando um paralelo com a adoração de uma turminha, que vive ali pelas ruas de Pinheiros, por “uma banda paulistana de pop-rock-meio-indie-meio-romântico chamada O Terno”, nome de outro conto, um dos pontos altos do livro ao lado de “Nova Zelândia 2007”, onde a narradora tem uma ‘epifania’ sexual ao saltar de paraquedas.

Já em “Rio de Janeiro 2012”, no auge dos preparativos da Copa e Olimpíadas, uma das narradoras, talvez a Mari, conhece um engenheiro baiano, que trabalha na reforma do Maracanã, dentro de um ônibus urbano e, ao ir finalmente à sua casa, identifica em seu banheiro sinais assustadores do que viemos a viver anos depois. “Lembro-me bem dos recortes de revista colados com um plástico tipo contact no azulejo do banheiro do Marcelo em Botafogo, embaixo do chuveiro elétrico, na provável altura em que seus olhos paravam quando ele ensaboava a própria bunda”. Falar mais é dar spoiler. Em “As Influencers que amamos odiar”, o mundo instagrâmico admirado também não é poupado, “fazem festa cool no segundo andar de um predinho em Santa Tereza com plantas e gatos e discos e artistas e comida orgânica e posta tudo nos stories com piada interna…”

Lavei a alma lendo “Eu Odeio Dinâmica”, onde o universinho dos processos seletivos comandados pelos departamentos de RH das grandes empresas é detonado. “O amor da galera da dinâmica pela cartolina colorida merece um estudo, faltou cartolina na infância”. Já em “Tias”, a primeira experiência de maternidade se dá através do grupo das amigas do WhatsApp, quando se percebe o despreparo gritante da maioria para exercer a maternidade. Desinteresse? Provavelmente. Posso continuar enumerando outros momentos imperdíveis como “9 Dates que nunca aconteceram” e “Meia Lua Inteira (salvador e sonho)” até no final chegarmos à pandemia com “Não vai ter luto” e “Cá entre nós”, por exemplo, quando Futuros Amantes aparece de forma emblemática. Nesse momento, a leitura traz um travo amargo na língua, você para de rir, de se divertir, e percebe. Sim, a minha geração passou pela AIDS, mas a festa sempre continuava, apesar das perdas. Já agora os millennials estão perdendo os melhores anos de suas vidas, dentro de casa, sem festas. Ou não? Pelo menos eles tem Trem para Barcelona para ler….

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