Coisas de Mineira 25/06/2021
Leopardo negro, lobo vermelho é o primeiro livro de uma trilogia de alta fantasia inspirada no folclore africano, do autor jamaicano Marlon James, que também escreveu o premiadíssimo ‘Breve história de sete assassinatos’, ambos publicados pela editora Intrínseca.
Com uma narrativa não linear, o primeiro personagem que surge – e o narrador desse livro, é um homem que abriu mão de seu nome em um passado distante, e que agora é conhecido apenas como O Rastreador – isso por ter um faro aguçado, encontrando tudo o que foi perdido. Ele está sendo interrogado pela provável morte de um menino, e vai contando suas história para o Inquisidor geral. Já nas primeiras páginas, o rastreador dá um aviso que surpreende, uma vez que se espera pelo resgate: ‘A criança está morta. Não há mais o que saber.’
Ainda assim ele prossegue, contando como seu deu sua participação nessa busca. Vários mercenários são contratados para encontrar uma criança desaparecida, cujos pais estão envoltos em mistérios, mas que profecias sugerem ser aquele que destronaria o rei – talvez fosse até mesmo o herdeiro legítimo. Além do Rastreador, teremos personagens fantásticos, como o Leopardo negro, um metamorfo que se torna muito próximo do Rastreador quando ele ainda era jovem; um gigante, que não gosta de ser chamado assim; um búfalo deliciosamente sarcástico; uma bruxa; um antigo desafeto, entre outros.
“Me chamo Rastreador. Já tive um nome algum dia, mas o esqueci há muito tempo.”
Em uma África pré-colonial, o rastreador passa por diversas cidades, desbravando florestas cheias de demônios, necromantes, seres que flutuam entre gêneros e raças, surreais e imersos em violência.
Difícil falar do livro sem dar spoilers, mas acredite: a historia é mais sobre o caminho do que sobre o objetivo em si. Não é sobre o resgate, e, nesse primeiro volume, o foco é o rastreador, quem era e quem se tornou ao longo de sua jornada. Porque o diferencial dessa trilogia é que os livros seguintes vão trazer a mesma história, mas sob o ponto de vista de outros personagens. Acredito que isso nos dê um quadro mais real, visto que nosso narrador não é necessariamente confiável, e ele não tem condições de apresentar todos os fatos envolvendo todos os eventos relativos a essa estória – daí a beleza de ter outros livros, contando a mesma aventura.
Justamente por essa narrativa tão diferente, que vai e vem no tempo, as primeiras 150 páginas de Leopardo negro, lobo vermelho parecem confusas e não deixam claro o objetivo do narrador. As história que ele conta são algumas fantásticas, outras, um incômodo latente em função da violência, dirigida sobretudo a crianças. E já adianto que foi o que mais me incomodou – o uso excessivo de sexo, de violência, de pedofilia, sem a meu ver, propósito para a narrativa. Portanto, falta um aviso de muitos, muitos gatilhos presentes na trama.
“O que é a verdade quando ela está sempre se expandindo e se enconlhendo?”
Também me incomodei com a forma como as mulheres foram retratadas por aqui: submissas, bruxas – pejorativamente, ambiciosas – também numa descrição depreciativa, prostitutas. A relação com a mãe talvez seja a causa dessa relação, e espero que o próximo livro, que a princípio traz o relato sob o ponto de vista de Sogolon, a Bruxa da lua e representante da irmã do rei, subverta essa visão.
Mas a beleza desse livro se faz em muitos aspectos. Primeiro, porque nos traz uma África ancestral, explorando as ricas mitologias em um ritmo frenético, com um grupo atravessando terras fantásticas, sendo confrontados com monstros alados, necromantes, portas que levam apenas quem as conhece a pontos específicos do mapa. Em entrevistas, o autor relata que fez uma pesquisa extensa sobre mitos, épicos, a cultura africana, para incorporar ao livro. Por exemplo, logo no início o Rastreador encontra a Sangoma, antibruxas que atuam como curandeiros entre os povos Zulu, e que, por aqui, abriga os Mingi, crianças que são mortas porque nasceram com alguma deficiência, uma vez que alguns povos acreditam ser maldições.
Leopardo negro, lobo vermelho traz também questões relativas à gênero. Nosso narrador é homossexual, e foi uma criança que não passou por um ritual de ‘retirada da mulher’, provavelmente uma circuncisão. Entretanto, isso não o refreia, e ele não parece muito preocupado por gostar de outros homens, e faz de uma forma bem natural.
“Se você passasse toda sua vida entre monstros, o que seria monstruoso para você?”
E os mapas… o livro vem recheado deles, e foram desenhados pelo próprio autor. A história é dividida em seis partes, e as cinco primeiras vêm precedidas por mapas, que nos permite caminhar com esse grupo de mercenários. Não espere um grupo unido sob um grandioso propósito: eles são mercenários, todos eles com uma construção bem cinza, nebulosa, não sabemos o que realmente querem, e onde se encontra sua lealdade. Ninguém segura a mão de ninguém por aqui! E, se hoje algum personagem é o inimigo, na sequência pode se tornar um parceiro, sem remorsos!
Leopardo negro, lobo vermelho é uma história carregada de traições, fugas, reencontros, combates que podem ser fatais – melhor não se apegar à ninguém, e com um final que volta para o início, já que sabemos como se deu esse resgate. Mas, ainda são muitas partes faltantes, e a curiosidade sobre partes que são apenas mencionadas ficam presas na memória – é difícil sair desse universo!
Uma capa maravilhosa, corte colorido, com fitilho – sim, está caro, mas é daqueles livros para se admirar na estante. Conta ainda com glossário, que me ajudou a visualizar alguns dos personagens. Só quero reiterar que o livro é recomendado para maiores de 18 anos!
Por: Maísa Carvalho
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