Livros da Julie 13/06/2021A perda da inocência sobre competições esportivas-----
"um 'delator' é um homem que habita em um limbo ambíguo, em que o orgulho perverso de suas realizações antiéticas do passado coexiste com o desejo de expor o sistema corrupto que o nutriu com sucesso por muito tempo."
-
"Você já deve ter ouvido a fábula da raposa e do galinheiro. Bem, eu era a raposa, construí o galinheiro. E, então, comi as galinhas."
-
"quem teria previsto que o Muro de Berlim seria derrubado durante a minha vida, ou que a outrora onipotente União Soviética deixaria de existir? Mudanças radicais acontecem quando menos se espera."
-
"o esporte é a verdade. Uma verdade ocasionalmente corrompida, mas mesmo assim um belo ideal."
-
"Doping, ou fraude, era o que os nossos adversários faziam. Os atletas soviéticos eram patriotas, puros e honestos, defendendo a glória eterna do comunismo."
-
"Atletas, sobretudo os campeões, não costumam ser muito inteligentes."
-
"se você não se metesse em confusão e não reclamasse da sociedade soviética, você e sua família eram agraciados com um apartamento à beira-mar em um resort no Mar Negro, incluindo todas as refeições."
-
"os marinheiros não tinham direitos. Os acidentes a bordo eram guardados em segredo, e os piores eram mantidos no freezer."
-
"A força da vida fora da Cortina de Ferro, capaz de enfraquecer a ideologia política, era um dos motivos pelos quais a União Soviética limitava as viagens ao exterior e permitia que somente funcionários 'confiáveis' visitassem o Ocidente. E aqueles funcionários eram obrigados a deixar um` familiar em casa, por via das dúvidas."
-
"O stalinismo - a era das 'confissões' induzidas por tortura, seguidas de longas penas de prisão ou pior - não era um passado assim tão longe."
-
"Quem pode mais, chora menos."
-
"Os assassinos do FSB tinham muitas maneiras diferentes de silenciar os 'inimigos do Estado', e envenenar aqueles inimigos fazia parte do programa patrocinado pelo Estado e desenvolvido ao longo de décadas."
-
"Eis o que acontece quando você cumpre as regras: você perde."
-
"Rússia e Estados Unidos são como planetas completamente diferentes. Há uma distância civilizacional gigantesca entre os dois países, que acho improvável que seja reduzida, ou até mesmo compreendida, no futuro próximo."
-----
O protocolo russo foi o livro do mês de abril da leitura coletiva da Faro Editorial promovida pelo @clubeliterarioferavellar (#ClubeLiterarioFerAvellar).
Em um misto de autobiografia e reportagem, o livro trata do "sistema" que institucionalizou a fraude no controle antidoping na Rússia e que levou à criação do maior esquema de doping de que já se teve conhecimento, executado em 2014 durante os Jogos de Inverno de Sochi e cujo protagonista foi o próprio autor.
Corredor profissional e formado em química, Grigory Rodchenkov foi nomeado diretor do Centro Antidoping de Moscou em 2005 e, por uma década e cinco Olímpiadas (de Verão e de Inverno), foi o principal responsável por operações que visavam a obtenção de resultados falso-negativos nos testes de doping dos atletas russos, contando com o acompanhamento e a benção das principais autoridades do país, dentre elas o próprio Presidente Putin.
Indícios de fraude começaram a ser apontados por organizações internacionais e as descobertas vieram à tona, o que resultou na suspensão ou na participação limitada da Rússia em várias competições internacionais desde então, incluindo os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Tóquio em 2020, adiado para este ano. Devido ao rumo tomado pelas investigações e temendo pela sua vida, Grigory decidiu fugir em 2015 para os Estados Unidos, onde ainda se encontra exilado e vivendo às escondidas, ameaçado de prisão e morte pelo governo russo.
O livro foi construído de forma extremamente didática. Após uma introdução sobre o autor e um resumo da narrativa, há uma explicação sobre os principais termos do doping esportivo, incluindo as substâncias utilizadas e os tipos de detecção, o que nos ajuda a entender o assunto. A seguir, vem uma lista com os principais "personagens" da história, suas relações com Rodchenkov e seus locais de trabalho. Depois inicia-se a a biografia propriamente dita, na qual o autor rememora sua juventude e sua carreira, até o começo do seu envolvimento com a burla do controle antidoping.
A história de Grigory passa então a se confundir com a história da fraude russa, culminando na operação de Sochi, idealizada e executada por ele. Ao final do livro há um passo a passo com as etapas e o nome dos envolvidos na operação e uma lista das abreviaturas citadas ao longo do texto, com uma breve explicação.
Ao contrário do que se poderia esperar, O Protocolo Russo está longe de ser um livro maçante. Ele tem uma escrita fluida e instigante, que fomenta a curiosidade e cria um suspense de prender a respiração enquanto se aguarda o desenrolar dos fatos. O autor consegue transmitir emoções com grande facilidade e sentimos a mesma tensão e apreensão que ele deve ter sofrido durante os jogos olímpicos e as investigações.
Aos poucos compreendemos melhor a lógica que sustenta o doping esportivo. O livro expõe não só os (controversos) benefícios para um atleta de alto nível, ao ajudar o corpo a suportar a pesada carga de treinamento e o cansaço extenuante, como também o lado negro do vício, em que nada nunca é suficiente. Recorre-se às drogas para se superar e render mais do que o humanamente possível, para fugir da pressão psicológica exercida pelos treinadores e pela sociedade, para garantir aqueles milésimos de segundo que farão a diferença entre a medalha de ouro e a de prata. Os campeões russos possuíam um incentivo adicional: formavam uma classe superior, com direito a moradia e remuneração.
Citando vários atletas como exemplo, o autor mostra que o uso de substâncias proibidas é mais comum e frequente do que se imagina. No entanto, os laboratórios de controle servem mais para acobertar do que para apontar os casos, pois "estão sempre atrasados em relação aos esportistas que se dopam, produzindo principalmente resultados falso-negativos". As limitações eram exploradas e os resultados positivos, adulterados. Grigory revela os meandros do esporte naquele país e a filosofia do governo: orientar o uso controlado do doping para que todos estivessem "limpos" na época das competições. Valia tudo para proteger os heróis da nação e promover os ideais e as ilusões de uma Rússia poderosa, influente e ganhadora de medalhas.
O autor registra a escassez de alimentos e a violência que se seguiram à perestroika e a queda do regime soviético, bem como as parcas condições de vida, as dificuldades de consumo e os mercados negros que existiam antes na URSS. Certos itens eram uma raridade, livros eram proibidos e jornais, censurados. Notícias internacionais verdadeiras não chegavam à população e notícias falsas eram plantadas. A desinformação era importante arma de defesa dos países socialistas e de ataque aos demais.
O Protocolo Russo é uma crítica ao governo e ao sistema esportivo, ao jogo político que incentiva a vitória a qualquer custo, aos organizadores de eventos que fazem vista grossa e abrandam punições, aos espectadores que aplaudem níveis de excelência sobre-humanos e anseiam por performances utópicas. Sem falar na lógica econômica perversa: "o controle antidoping significava escândalos, que afetavam a popularidade do esporte, os patrocinadores, o comparecimento potencial de público e as receitas de televisão".
Em última instância, o autor põe em xeque toda a credibilidade do esporte. Termina-se o livro com uma sensação de desesperança, de descrença no autêntico espírito desportivo e em todas as grandes performances que já ocorreram. Muitos dos resultados excepcionais das últimas décadas podem ter sido alcançados de forma desonesta. Será que algum atleta já competiu totalmente livre dos efeitos de qualquer substância? Será que a probidade ainda tem vez neste mundo?
Como diz George Orwell, escritor citado em várias passagens e de quem Grigory é fã, "em uma época de mentiras universais, dizer a verdade é um ato revolucionário". Vale a pena assistir ao filme "Ícaro", no qual Rodchenkov fez sua delação. Ganhador do Oscar 2018 de melhor documentário e disponível na @netflixbrasil, o filme ajuda a visualizar tudo o que aconteceu no livro, embora os detalhes possam ser de difícil compreensão sem a leitura.
site:
https://www.instagram.com/p/CP_oXMMjm1f/