Lauraa Machado 16/06/2022
Uma das maiores decepções desse ano
Eu já vi muita gente reclamando quando falam na resenha que um livro "parece fanfic", mas esse é o melhor jeito de resumir o que achei desse livro. Parece uma fanfic. E isso significa que a ideia está crua demais, não parece ter amadurecido a ponto de fazer sentido e passar firmeza. Falta firmeza na construção do mundo também, que é completamente raso e só existe até onde as personagens principais precisam dele. O romance tem potencial, mas também precisava ter sido trabalhado melhor. Tem alguns comentários ofensivos e racistas soltos pelo livro, e definitivamente não parece ser uma história que teve agente ou editores, pessoas de fora, trabalhando nela com a autora. Parece uma fanfic, porque parece um livro que a autora escreveu sozinha, sem ajuda, sem edições, sem tanta noção de como fazê-la ir de uma história bacana a um livro profissional.
E eu sei bem como é isso, porque sou uma autora que trabalha sozinha e que não tem ninguém para trabalhar no texto com ela. Sei que tem certas coisas que você simplesmente não consegue enxergar no seu próprio livro e, se enxerga, não consegue mudar sozinho. Mas esse livro devia ter passado por uma edição melhor. Ele não deveria ter me dado essa sensação de história crua do começo ao fim.
Acho que está na hora de explicar por quê. A começar pelo romance, que era para ser o que carrega a história. Acredito de verdade que a autora começou a pensar nesse livro por ele, pois foi a única coisa que estava acontecendo por pelo menos metade do livro. Não é um romance exatamente ruim, ele só não tem tensão e nem cria expectativa. É claro que as duas vão ficar juntas, ninguém é besta o bastante para não saber isso de cara. Mas mostrar interesse romântico da parte das duas logo na primeira vez que se encontram foi um tiro no pé. Elas já iam interagir, já iam ter cenas de aproximação e eu, como leitora, já sabia que iam ficar juntas.
Ou seja, eu poderia ter colhido as migalhas de toques e olhares sem ficar estampado na narrativa que o romance já estava acontecendo. Leitores conseguem perceber interesse romântico sem ser escrito em palavras. Quando não está escrito, é sempre melhor, porque você acaba lendo mais rápido, sedento por aquele momento em que elas dão o braço a torcer. Quando, logo de cara, as duas já estão admitindo para si mesmas que gostam uma da outra e que seu interesse tem algo por trás, essa tensão se perde e a vontade de continuar lendo não aparece tão forte.
Não sei se expliquei direito, mas metade do livro inteira é só interação das duas para criar romance, não acontece mais nada, então tinha que ser uma interação mais forte, tinha que ter mais tensão, tinha que criar essa sede por mais. Ou então tinha que melhorar o enredo. De duas, uma.
O enredo, aliás, é bem fraco e só piora por causa da protagonista, Dimitria, que é um pouco burra demais para investigar qualquer coisa. Pelo amor de deus, ela encontrava uma prova e não conseguia deduzir nada, não conseguia seguir linhas básicas de raciocínio. Pelo contrário, ela criava ligações que não faziam sentido nenhum! Estava pronta para matar o assassino (leis e prisões para que) assim que começasse a desconfiar de uma pessoa, sem qualquer prova ou lógica! E a grande descoberta do culpado foi um pouco anticlimática para mim, porque já estava desconfiando e esperava mais mesmo assim. A única revelação minimamente interessante foi outra aí, mas ela também prometeu bem mais na hora que apareceu do que entregou depois.
Apesar da autora fazer questão de dizer que a Dimitria era a "melhor caçadora da região", a gente vê ela "caçando" uma única vez e, em outra cena, quando ela deveria estar provando suas habilidades, ela literalmente anda de noite em um mundo meio medieval e consegue não só ver detalhes mínimos nas pegadas na neve no meio da floresta escura, como consegue enxergar seu caderno e ficar desenhando os detalhes? Eu ri.
Tem vários momentos assim, em que eu esperava tudo estar escuro ou frio, mas isso nunca era um problema para a cena. Era dito que estava escuro ou frio, tudo era dito, mas não existiam consequências disso. Demi passa horas agachada na neve e, quando se levanta, não está com dor nas pernas, não está molhada, não está nem com fome, não está com nada. Tá super de boa e pronta para sair correndo. Como dá para acreditar na ambientação assim?
Isso é por causa de um dos problemas da narrativa. Ela fala tudo, fala e fala e fala, mas não mostra nada. Fala que está frio, mas não mostra a reação das pessoas. Nem precisava falar, na verdade, era só colocar pessoas se encolhendo, vestindo roupas diferentes, mas isso nunca acontecia. Elas sempre vestiam as mesmas roupas, fosse no final do verão ou no inverno pesado. Elas sempre enxergavam do mesmo jeito, fosse dentro de uma mata fechada de noite ou em campo aberto embaixo do sol. E é super comum autores não se atentarem a isso, principalmente em fanfics, que escrevem sozinhos. Por isso é tão importante ter editores trabalhando no seu texto e te alertando.
Isso de falar sempre e nunca mostrar foi o que me impediu de gostar da Aurora. Dimitria fala o tempo todo o quanto a Aurora é gentil, generosa, um anjo de pessoa, mas a Aurora, quando aparece, nem faz nada demais. Ela é super normal e minimamente educada, mas nunca se mostra tão gentil assim. Uma única cena dela sendo bastante gentil e generosa já daria essa impressão para o leitor, sem que a Demi tivesse que ficar repetindo. Além disso, nunca senti firmeza no universo da história, não só por parecer existir apenas até onde as personagens precisavam dele, mas porque era mesmo muito dito e pouco mostrado. Me faltou a impressão de que as pessoas existiam, de que Dimitria estava ali, fisicamente. Parecia um cenário montado em papelão para uma peça de teatro, não algo muito maior, cujo pequeno pedaço em Nurensalem seria tudo a aparecer nessa história.
Outro problema da escrita, para mim, foi a discordância entre a narrativa e os diálogos. A linguagem dos diálogos é informal e moderna demais, e isso de todos os personagens. Não adianta falar que uns são nobres e os outros são plebeus, se eles falam do mesmo jeito, moderno e pouco natural, sem deferência ou qualquer coisa assim. Mas o maior problema mesmo foi a narrativa ser o oposto, formal e desconfortável todas as vezes em que palavras simples eram trocadas por sinônimos desnecessários. A palavra "corpo" deve ter aparecido uma única vez, já "corpanzil" apareceu umas cinco. E para quê? Para tentar fingir uma narrativa mais sofisticada? E depois chutar o balde nos diálogos? Não combinou em nada, na minha opinião, e me deixava tonta tentar acompanhar essa troca de tom entre as falas e a descrição das cenas.
Outro problema da escrita foi a influência do inglês. "Assumir" não é presumir, nunca foi, mas é usado nesse livro várias vezes com esse sentido. "O fruto não cai longe da árvore" não é uma expressão nossa. Tem outras expressões e detalhes assim que eu reconheci pelo inglês. Além disso, tem vários problemas de revisão na minha edição. Falas colocadas sem quebra de parágrafo, falas sem travessão e travessão sendo usado em lugar de meia-risca, falta de crase onde precisa, falta de ponto final etc.
E agora para a crítica que mais me fez perder o amor pela história. Não que eu estivesse amando, mas relevaria tudo e daria pelo menos três estrelas, se não fosse pelas milhares de comparações entre a protagonista e seu irmão, os únicos personagens negros do livro, com animais. É o tempo todo, desde o começo até o final. Vieram de pessoas teoricamente ruins, mas foi de muito mal gosto e era desnecessário. Super daria para ter xingamentos que não tivessem já uma história de racismo na nossa sociedade e nas cabeças de pessoas que vão ler esse livro! O pior deles, na minha opinião, foi quando um personagem disse que os dois únicos negros tinham sido comprados, por isso, tinham "comprado o lote todo".
Pelo amor de deus, contrate alguém para uma leitura sensível, principalmente se o livro é de uma editora grande (ou seja, vai ter um alcance enorme, com propaganda até no Skoob) e tem como protagonista uma garota de uma raça diferente da sua! Não adianta falar que, no livro, isso não importa, a raça não é uma questão, quando as pessoas que lerem vivem no mundo real (e os personagens coincidentemente só falam isso dos dois). Foi bastante incômodo ver as comparações com animais, com lote e os outros sempre chamando os dois únicos negros de "essa laia" várias e várias vezes.
Não posso dizer que recomendo o livro. Claro que muita gente pode gostar, então, se tem curiosidade, dá uma chance. Mas confesso que foi uma das minhas maiores decepções, pois a propaganda enorme me fez pensar que tinha sido um livro muito bem trabalhado e desenvolvido, não algo que me faria querer abandonar no meio e sair pensando que era melhor ter ido procurar uma fanfic de verdade para ler.