edu basílio 25/03/2021kazuo & o brilho
futuro próximo.
os AA (amigos artificiais) -- robôs humanoides fotoalimentados, concebidos para serem companheiros de adolescentes -- se tornaram corriqueiros. os AA são comercializados em lojas e, como os automóveis, aqueles de uma nova série trazem "melhorias" com relação às séries precedentes.
klara não é uma AA da última série recém-lançada, mas possui uma capacidade excepcional, quase única, de apreender toda a dinâmica do seu entorno e captar as menores sutilezas nos olhares, falas e gestos das pessoas com quem conversa ou que simplesmente observa de longe. após um período de angústia, alternando dias na vitrine com outros nos fundos da loja, klara enfim cai nas graças da simpática jovem josie (por quem também manifesta uma espécie de afeto desde os primeiros contatos) e ganha um lar.
à medida que a narrativa avança, fica cada vez mais evidente o quão puro e ingênuo é o coração de klara, ao mesmo tempo que seu intelecto é extraordinário. é por meio do seu relato que se descortina para o leitor sua linda amizade com josie, que sofre de uma doença grave. construído com essa mistura improvável de ingenuidade e inteligência, o relato de klara revela também, aos poucos, a complexidade de um mundo transformado, em que a poluição atmosférica agride a todos e a possibilidade de edição genética em seres humanos criou uma profunda cisão social.
gravitam em torno de josie adultos cujas histórias de vida vão sendo reveladas por meio do mosaico das impressões de klara (ora uma alma que vê seus erros juvenis de décadas antes estapeando-lhe de volta o rosto; ora um cidadão que se engaja por seu ideal de sociedade, ainda que isso lhe renda ser tratado como pária, e muitos, muitos corações fragilizados pelo luto, angustiados pelo pavor de mais perdas e inábeis em lidar com o amor que eles próprios carregam). em meio a essa complexidade toda, a reverência de klara pelo sol -- que generosamente oferece a ela sua nutrição diária -- a leva a se pactuar com o astro por uma causa maior e mais ambiciosa, e que constitui a metáfora central sobre amizade e altruísmo no romance.
"...and you're asking me why pain's the only way to happiness,
well, I promise you: you'll see the sun again..."
dido -- "see the sun" -- álbum "life for rent" (2003)
o livro é lindíssimo, com uma escrita límpida e docemente melancólica, como seria de se esperar em um romance de ishiguro. o que me trouxe uma pequena frustração foi o que enxergo como falta de ousadia do autor, tão elogiado e apreciado no mundo todo muito em razão de, até então, ter sempre construído cada romance radicalmente diferente de seus precedentes. mas não aqui: o senso rígido de 'dever de servir' de klara é idêntico ao do mordomo mr. stevens, de "os vestígios do dia", ao passo que a atmosfera sutilmente distópica, em que o conceito de humano está posto à prova, é idêntica à de "não me abandone jamais" (seria coincidência esses romances serem os seus dois mais aclamados e premiados, com conhecidas adaptações para o cinema?). em todo caso, em seu primeiro livro após ser laureado com o nobel de literatura, kazuo optou por transitar dentro de uma zona de conforto, o que vi como uma lamentável e desnecessária economia de ousadia.
relevada essa pequena frustração pessoal, também é fato que nesse novo romance há tudo o que amamos em kazuo: sua prosa contida e elegante, seu peculiar estilo 'niponicamente british', sua capacidade de conduzir a trama para aquele ponto em que uma pinçada no coração se torna inevitável... agora é esperar mais 5 ou 6 anos até termos a alegria de um novo romance seu -- o mesmo tempo que a gente espera por um álbum novo da não menos britânica (nem menos talentosa) cantora dido, que canta a linda "see the sun", cujo trecho transcrito acima eu achei possuir um encaixe natural nesta pequena resenha :-)
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