euliipeb 15/02/2023
Ótimo quadrinho que vai crescendo em ti quando mais se pensa sobre.
Com uma premissa simples e, por isso mesmo, genial, Marc-Antoine Mathieu nos apresenta um quadrinho que mostra o que aconteceria se Deus encarnasse aqui na Terra. O resultado é humorado, reflexivo e crítico em iguais medidas.
O que gostei da obra foi que ela se trata de explorar Deus em dois pontos: primeiro na parte filosófica, da possibilidade de um ser perfeito. Nisto temos especialmente o processo discutindo o que é Deus, se ele existe, como ele seria e tudo o mais (na presença do próprio, que sempre dá contribuições enigmáticas que mais embolam do que esclarecem). É Deus como divindade, ainda que se abdique fortemente da parte religiosa e teológica (ainda que evidentemente seja o Deus do monoteísmo judaico-cristão, não há uma preocupação em explorar o que a vinda de Deus significaria para estas religiões e seus bilhões de adeptos). O outro ponto é da parte midiática e marqueteira: Deus se torna um produto absoluto, uma marca onipresente e com apelo onipotente, o que permite críticas do papel da mídia em nosso mundo, do monopólio de temas e produtos, do reducionismo das culturas e outros tantos aspectos importantes, abordados sempre de forma humorada pelo autor. É Deus como popstar. Há uma prevalência desse segundo aspecto, vide o final da obra. O quadrinho se desenrola nestes dois pontos e encontrando interseções entre eles, o que faz com que ele inteiro seja interessante.
O mundo apresentado é o nosso, mas não é. Digo, há muitas evidências de nacionalidades, religiões, etnias, países, empresas e todas as outras instituições, mas nenhuma em específico é citada. O próprio início, com o Censo, já cria esse ambiente de realismo mágico, de mundo kafkiano, por aí vai. Isso se casa perfeitamente com a linda arte de Mathieu, que sabe dar ritmo, utilizar o espaço vazio, explorar a grandeza e simplicidade, de dar distinção estilizada para os personagens e manter a vagueza deles, de mostrar Deus sem nunca mostrá-lo, de explorar outras artes (como a tipografia, arquitetura, o quadrinho dentro do quadrinho, o teatro, entre outras) e usar os contrastes entre preto e branco, especialmente no uso abundante de cinza (sério, esse é um dos quadrinhos mais cinzas que já li, em muitos sentidos).
A edição da Comix Zone segue seu padrão e alta qualidade. Se já tem um quadrinho da editora então sabe o que esperar. Não é diferente do que costuma ser seus outros quadrinhos, e isso é ótimo pois o nível é alto.