Fernanda M. 03/01/2024
A mulher negra como objeto e sujeito na discussão
Comecei a ler Cartas a uma negra, da Françoise Ega por indicação de uma professora que conheci recentemente, que após alguns minutos de conversa sobre o meu projeto de pesquisa no Mestrado, sugeriu essa leitura.
Ficou muito claro para mim, que a indicação desse livro se deu pois as cartas escritas pela Françoise Ega, se dirigiam à Carolina Maria de Jesus, escritora brasileira, que muito embora não tenham se conhecido, seus escritos foram responsáveis por estabelecer uma grande conexão.
A Mamegá (como era comumente chamada) descobriu os escritos de Carolina, por que acessou uma publicação feita em um jornal na França, em 1962, com um breve relato sobre a publicação de Quarto de Despejo - com auxílio de Audálio Dantas - e alguns trechos da publicação.
Há muitas diferenças entre as escritas das duas autoras, que não se limitam apenas a questões textuais, já que a minha leitura do livro é uma tradução feita para a língua portuguesa. E dadas as circunstâncias (tempo-espaço), entendo que a francesa tinha ensino médio completo e era formada em datilografia, ao contrário da brasileira, que tinha frequentado apenas os anos escolares iniciais.
Mas essa não é a única diferença que percebo até este momento da leitura. E apesar das diferenças percebidas acerca da rotina das duas mulheres, ambas sofrem com as condições precárias em que vivem e se incomodam com a forma como as pessoas ao seu redor são tratadas socialmente.
Françoise tem um grande afeto pelas pessoas da sua terra (Martinica), e relata a vinda dessas mulheres para a França com muita tristeza, pois essas mulheres são tratadas de forma totalmente diferente das mulheres nascidas na França, a saber, com desprezo e indignas de terem acesso a um empregos menos desgastantes como o é, o de empregada doméstica.
Apesar do racismo que elas sofrem, a forma como este se manifesta é completamente diferente, muito bem expresso por Carolina em seus livros e pela Françoise em seu texto epistolar. A pobreza é diferente, as dores são diferentes. Carolina cata papel para viver, e esta é uma realidade muito distante da Françoise, que tem 1 marido e 5 filhos, mas que trabalha em casas de famílias francesas abastadas com o intuito de aumentar a renda.
Ela relata que na verdade está fazendo um estudo, uma experiência, uma coleta de dados sobre as mulheres negras, vindas da Martinica, que são contratadas nessas casas, por essas famílias na condição de empregada doméstica, em Marselha, na França, mas que na verdade, são amplamente exploradas pelas famílias contratantes, em especial pelas mulheres.
Dá para perceber nitidamente os níveis de pobreza, e é gritante quando a Françoise, volta para casa, de ônibus, e ainda lhe sobra um dinheiro para tomar café. O marido faz questão de manter a casa e não deixa que lhes falte nada. Diferentemente, Carolina e seus três filhos sofrem com a insegurança alimentar e total instabilidade de sua moradia.
A Françoise se sente totalmente representada por Carolina, e ela escreve as cartas como se vivesse uma realidade muito próxima, sem ter noção da ausência da "segurança matrimonial" com a qual Carolina vivia, em um barraco de tábua, coberto com zinco. A mercê de violências e falta constante de salubridade, que só a Carolina soube bem, pois experimentou na carne.
Tem uma coisa que aproxima a Françoise da Carolina, que aproxima talvez todas as mulheres, que é o fato de não ter um tempo, "um teto todo seu", um espaço para conseguir colocar no papel as suas ideias. Esse é um ponto forte de conexão entre elas duas, porque elas têm as mesmas privações na hora da escrita e que na verdade não necessariamente precisam estar relacionadas com as privações financeiras, econômicas e sociais.
Em determinado ponto do livro, tem uma parte na qual a narradora-autora descreve um episódio, em que ela foi trabalhar em um lugar e não contou ao marido sobre as condições de trabalho. Conforme ela descreve, era um prostíbulo disfarçado, e ela diz que não conta para que o marido não a impeça de se deslocar para o lugar e tentasse impedir que ela continuasse com o que ela chama de "experiência documental".
Depois ela complementa "só podemos falar com propriedade sobre o que presenciamos". Isso é bem uma tentativa de se aproximar da forma como Carolina Maria de Jesus reproduz no seu dia a dia, não como um experimento, ou como uma experiência documental, mas como uma forma de compreender a sua própria realidade.
Acredito que é isso que Carolina fazia: escrevia para tentar entender como tudo aquilo podia ser possível e as condições em que ela e os três filhos se encontravam. Como era degradante e a fazia se sentir tão mal. Ela também acreditava que ela era uma escritora, uma poeta. Para ela não se tratava de uma experiência, mas um relato sobre o modo como vivia. Reitero que a Carolina não era uma catadora de resíduos, mas uma escritora, que catava resíduos para viver.
Uma coisa interessante no livro, é que a Françoise não acreditava na possibilidade de publicação do livro, não se entendia como escritora, se diferenciando da escritora brasileira que acreditava que o seu livro precisava ser publicado, pois ela sim, se entendia como escritora-poeta.
A Françoise entende a escrita como uma segunda atividade. Quando ela recebe a visita do editor em sua casa em Marselha, fica entusiasmada, mas não demonstra esperança por entender a impossibilidade de se tornar uma escritora. Entendo agora que assim se sentia por falta de representatividade.
Ela pensa que escrever, que ser escritora, vai além do que ela tem feito, que é expor o dia a dia e suas experiências. Mas o que é escrever de fato, se não colocar no papel todas as experiências? Por que as experiências de uma pessoa branca são mais importantes que as experiências de uma mulher negra? O que há de mais interessante na vida de uma pessoa que é branca e rica? Por que a vida dessa pessoa é mais importante e mais interessante do que a vida de uma mulher negra, trabalhadora, vinda da Martinica ou do interior de Minas Gerais, que precisa ser repensado antes de ser escrito e publicado?
Encerrei a leitura e li alguns textos de apoio, textos complementares, que auxiliam na compreensão desse livro e como as informações paralelas e contextuais permitem que entendamos sob que perspectivas a Mamegá, a Madame Ega, que escreveu o livro de forma epistolar.
Nesses textos é possível descobrir algumas curiosidades sobre a autora, como por exemplo, quantos livros ela escreveu, como ela acessa as informações, como ela descobriu o texto da Carolina e então a grande surpresa: a Françoise não leu o livro da Carolina, na verdade.
Ela viu pedaços do livro em uma reportagem, e foi o suficiente para que se encantasse e compreendesse de forma empática o que a Carolina estava falando. Os textos falam sobre a não-leitura, que já é uma leitura e outras perspectivas interessantes como a vida da Françoise, a escrita de outras mulheres negras e como isso pode reverberar positivamente ou não.
No geral, é uma forma de entrar em contato com Carolina e um ponto de identificação, como tantas outras mulheres que se identificam, mas que não conseguiram se expressar, porque não achavam que suas vivências não era algo que merecesse ser escrito. A Françoise se sente objeto e sujeito no seu processo de escrita, informação retirada dos textos complementares, recomendo por tanto a leitura completa da obra.
A francesa escreve as cartas partindo de uma premissa não de escrita, mas como uma forma de dividir momentos e experiências é uma forma de partilhar, se identificar e se corresponder com uma interlocutora que nem irá ler as suas cartas, nem respondê-las.
Muito lindo, e espero que outras mulheres consigam escrever e consigam entender a importância da sua escrita independentemente da sua condição social e da sua cor de pele e que todas possam ter o seu próprio espaço para escrever, e oportunidades para publicar.