Mouraci 04/01/2024
Temos que falar...
Júlia escreve uma carta aos filhos gêmeos de 3 anos relatando o estupro sofrido há 5 anos.
Como é possível continuar a viver depois de uma violência tão grande?
O estupro é um câncer em uma sociedade misógina, que objetifica a mulher. Eles ocorrem em todas as classes sociais e em todos os lugares, mas as estatísticas mostram que a maior parte dos estupros ocorrem dentro de casa, cometido por maridos, familiares ou pessoas próximas e, em sua maioria, entre as classes mais baixas. No caso do livro, a protagonista é uma arquiteta que vive no Jardim Botânico, zona sul do Rio.
O romance é uma ficção baseada em fatos reais. A escritora entrevistou uma amiga que sofreu um estupro em uma terça-feira à tarde na Vista Chinesa, uma réplica de um pagode chinês que fica há 3 kms da entrada do Parque Nacional da Tijuca, a maior floresta em área urbana do mundo. Diferentemente das estatísticas, ele ocorreu numa mata fechada. (Deste mirante, vê-se o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar, a Lagoa Rodrigo de Freitas e o Arpoador. Quanta beleza e miséria!!)
O pano de fundo é um Rio de Janeiro que, enfim, daria certo. Local que sediaria a Copa do Mundo e em dois anos, as Olimpíadas, mas que em pouco tempo entraria em decadência.
Escrita em 1ª pessoa, a escritora traduziu os relatos traumáticos e doloridos em linguagem literária. E como é bem escrito!! Vários momentos da vida de Júlia são relatados de forma não linear. A memória fragmentada pode ser sequela do trauma sofrido ou da dislexia que a personagem sofre.
Além de espiar a culpa (por que ela corria em um lugar ermo daqueles? Por que à tarde, momento em que o local fica deserto?), outras motivações estavam por trás desta carta:
- O medo que os filhos conhecessem a história por outras pessoas.
- O medo que os filhos, gerados naquele útero violentado, herdassem a dor que ela sentia diariamente.
- O medo que os filhos se defrontassem com o mal.
A palavra purifica!!
Não sabemos se a carta será lida pelos filhos algum dia, mas a escrita é uma forma de, se não diminuir a dor, pelo menos lidar com ela.
Apesar do relato crú e chocante (em respeito à entrevistada, que relatou o estupro com muitos detalhes, a escritora resolveu não ignorá-los e levou-os para o livro), vemos vários momentos de renascimento: a gravidez, a redescoberta do sexo com o marido, a terapia de cura no México, herança cultural herdada da avó.
Livro dolorido, mas necessário. Temos que falar!
Toda minha admiração e respeito por Joana Jabace, que teve a coragem de contar a sua história.