Pandora 23/03/2021Eu queria encarnar a jornalista ao escrever sobre este livro. Mas antes disso eu sou mulher. Não dá pra ser mulher e não temer a violência do estupro.
Numa terça-feira de agosto de 2014, por volta das 15h, a diretora de TV Joana Jabace corria próximo ao mirante Vista Chinesa, no Parque Nacional da Tijuca, no Rio, quando sob à mira de uma arma foi arrastada para o matagal e estuprada. Tatiana, grande amiga de Joana, que mora em Portugal, teve que dar seu apoio à distância. Ela acompanhou a saga de Joana entre exames, terapias, medicamentos, depoimentos e várias tentativas de reconhecer o estuprador.
“Durante uma visita à exposição "Os inocentes", da fotógrafa Taryn Simon, em que ela documenta casos de pessoas que foram presas injustamente a partir do reconhecimento das vítimas, Levy achou que tinha ali um gatilho para fazer o livro baseado na história de Joana, que na época também já havia desistido de reconhecer o agressor, por medo de cometer uma injustiça.” **
Só em 2018 o projeto realmente foi adiante.
A autora já deixou claro em entrevistas que o livro é baseado na história de Joana, mas é um romance e como tal, há coisas reais e fictícias. A própria Levy soube, aos 18 anos, que quando tinha quatro, a mãe foi violentada durante um assalto. A narrativa não é linear: vai e volta no tempo e mescla flashes da agressão com a tentativa da protagonista de seguir em frente. Fala de culto ao corpo, de maternidade, de um Rio de Janeiro no auge, que se preparava para as Olimpíadas de 2016.
"Organicamente a violência sofrida pela cidade foi se misturando com a violência sofrida por aquela mulher, a destruição do Rio de Janeiro é também uma violência física, sem retorno, e que deixa marcas." (Folha de S. Paulo)
Como não poderia deixar de ser é uma leitura difícil, mas por ser uma narrativa fragmentada, o ato em si, contado em detalhes, é exposto em partes, conforme a vítima vai se lembrando dos acontecimentos. Não que isto nos isente da dor, da tristeza, do inconformismo ante à violência dilacerante que é o estupro. Impossível conter o nó na garganta.
Penso em cada violência que uma mulher sofre ao longo da vida, no dia a dia... nos convites obscenos feitos no meio da rua, nas cantadas baratas nos bares, no assédio no trabalho, nas mãos que tocam sem permissão, nas encoxadas no transporte público, nas fotos eróticas não solicitação via redes sociais, nas que são preteridas profissionalmente porque geram vidas, nos magistrados, policiais e advogados que constrangem e desacreditam mulheres assediadas, perseguidas, espancadas, violadas, nos namorados, companheiros, maridos que não respeitam o NÃO. Que raça é a nossa, que sociedade é essa, quem somos nós que não nos respeitamos, que não nos preservamos?
Para além de escrever sobre uma agressão violenta, escrever sobre um ato que vitima pessoas tão próximas e queridas é algo que não sei mensurar, indescritível. Um livro pungente, ao qual não dou nota máxima por causa de algumas pequenas coisas que não me agradaram, mas que não me impedem de recomendar esta leitura.
"Naquele momento em que quase morri, eu morri. Ele foi embora e eu fiquei morta. Lembro de me virar, olhar para o céu e ter a sensação de que havia morrido, de ver as estrelas, de ouvir o som, como se alguma coisa estivesse se descolando do meu corpo. Eu estava indo embora." - pág. 99
** Trecho de entrevista dada por Tatiana à revista Elle.