Toni 26/03/2021
Leitura 14 de 2021
Senhora [2020]
Luiz Antonio Aguiar (roteiro), Shiko (arte)
Ática, 2020, 96 p.
Após adaptar *brilhantemente* O quinze de Rachel de Queiroz para esta mesma coleção, Shiko retorna à lit. brasileira contribuindo com a arte deste “Senhora”, de José de Alencar. Não fosse o romance um dos pontos altos da produção alencariana, a HQ já valeria a pena pelo traço inconfundível de Shiko e seu talento no uso de cores, closes e páginas inteiras. Pra quem, como eu, acabou de sair do universo sertanejo de “Carniça” (resenhado alguns posts atrás), testemunhar o nível de detalhes com que o tempo e o espaço do Rio de Janeiro do final do Império são construídos é mais uma prova de que estamos diante de um grande artista.
Considerando-se o desafio de sintetizar um romance de +ou- 300 páginas em 96, o trabalho do roteirista Luiz Antonio Aguiar foi levado a bom termo, por mais que, para aqueles que não leram o romance, o desenlace final talvez pareça um tanto abrupto ou mais fácil do que deveria ser. O importante é que os diálogos mais ácidos entre Aurélia e Seixas, o marido comprado, estão lá. Estes são “problemas” inerentes a adaptações entre diferentes mídias, e uma boa oportunidade para entender que adaptar significa mudar aquilo que precisa ser mudado para que algo possa existir satisfatória-e-adequadamente em outro espaço. Exigir fidelidade entre TODOS os aspectos de uma obra que passa do papel para a arte em quadrinhos, ou para o cinema, ou para o teatro etc, é ignorar que produção artística nenhuma acontece no vácuo, em condições ideais de reprodução—ou seja, sem interesses, ideologias, mercado e orçamentos a interferirem.
Por isso mesmo, voltemos à arte. Shiko consegue muito bem produzir contrastes entre a vida “exuberante” (de aparências, mesquinharia e negociatas) da corte e a pobreza desprovida de cor nas áreas pobres do Rio, de pessoas humildes e escravizades. Além disso, dá o devido destaque a elementos cruciais à narrativa, como espelhos, retratos e as “molduras” proporcionadas por janelas e cortinas—maneiras de enfatizar a vida dupla (pública/sentimental) e a performatividade de uma Aurélia nascida para enfrentar o machismo e o patriarcado.