Victor Campos 19/02/2023
Que obra maravilhosa, respeitável, linda, gostosa de ler. Acadêmica, com fontes, exemplos, argumentação em prol de uma hipótese ou em descarte de outra, ilustrações, leveza na escrita. Extremamente perfeito.
Existem duas dificuldades, que é o fato de que o livro é um trabalho não representado em seu título (original ou traduzido): ele se trata especificamente, na verdade, de dizer sobre a construção do estereótipo da bruxa satânica que permeou a maior parte da caça às bruxas da transição entre Idade Média e Idade Moderna, não da caça em si. Essa é a conclusão que fica, embora ele diga se propor a outro objetivo. Quando chega nessa caça, nas últimas cem páginas, a escrita se torna generalista, com poucos exemplos e afirmações mais diretas.
Supõe-se que ele deixa para que pesquisemos nas referências, que são muitas sobre esse tema, e sua maior polêmica seja com os determinantes históricos da construção do estereótipo, não com a caça às bruxas em si, de modo que há mesmo pouco a se dizer sobre isso, já que tanto já foi dito. Mas essa é uma aferição minha.
Uma outra hipótese é a de que o autor se cansou e escreveu rápido o final, para terminar logo. Também sobra essa impressão.
A outra dificuldade é a pouquíssima discussão de gênero ao longo de todo o texto. Na maior parte do livro, em que se discute a construção do estereótipo moderno da bruxa, de fato há frases soltas, embora fundamentadas em evidências (explicitadas), relativas ao quanto na história havia excessões (com homens sendo acusados de bruxaria) e ao quanto, em alguns lugares e épocas, os homens foram maioria entre os acusados. Mas essas frases, creio, são numeradas em menos de uma mão. E não busco exagerar nessa estimativa.
Há a afirmação de que as acusações tinham fins de controle político, e daí se depreende que as mulheres tenham sido mais acusadas em razão do patriarcado. Mas também isso é uma aferição que é o leitor quem faz. Ele não discute patriarcado e, quando chega na caça às bruxas em si, não há uma única menção do porquê de o gênero feminino fazer parte desse estereótipo.
Será porque mais mulheres foram acusadas e mortas? E, se sim, por que foram? Ele realmente não menciona a frequência de mortes por gênero na caça às bruxas do início da Idade Moderna. Ele nem menciona gênero.
E as respostas a isso não são óbvias. Poderia ser o argumento para não abordar isso. Ele desconstrói tantas certezas do senso comum ao longo do livro que você suspende qualquer crença que teria sobre o tema (e esse é um dos pontos que te faz devorar a leitura).
Para responder a essas perguntas, é necessário recorrer a outras obras, como as de Federici, que ainda não li. E cabe ser feita uma comparação entre a história apresentada por ela e a apresentada por Hutton, nos pontos que ambas tocam simultaneamente.
Mas não há nada explícito a respeito da determinação de gênero no estereótipo da bruxa no livro. O que o torna infelizmente incompleto. Isso precisa ser deduzido de suas afirmações escassas de que a perseguição com frequência tem fins políticos.
E, considerando a importância que gênero tem no estereótipo da bruxa (nos anexos o autor chega a comentar o quanto a figura da bruxa se faz presente hoje como veículo da emancipação da mulher), fica a dúvida sincera de por que isso não está presente no texto. Parece uma evitação intencional. Mas o autor faz outros comentários progressistas no texto, o que torna a ausência ainda mais incompreensível.