Lisa 23/05/2023
Os tons que existem entre o preto e o branco
Nascendo no Brasil crescemos com uma noção de raça ampla, afinal somos um país intrinsecamente miscigenado, o que, infelizmente, não nos isenta do racismo, tampouco dos dilemas de identidade racial. Contudo, nessa mistura o colorismo desempenha um papel de maior visibilidade e importância em nossa cultura, diferindo em muito da visão europeia e estadunidense. Esse último com sua intensa história segregacionista de apartheid e as leis Jim Crow, configurando uma nação que vê a raça pelo prisma simplista e reducionista da binariedade, se não branco, então preto; inclusive se não branco, então latino, como se fosse etnia.
"Nem tão branca" é um livro de 1928 e por muitas vezes me fez lembrar O Mulato do nosso Aluísio Azevedo. Mas se nós avançamos desde 1881, a ideia que Jessie Fauset apresenta aqui segue remanescente no US. Angela é uma garota branca, é também uma garota preta, mas para seu país é apenas isso, afinal tão somente um gota de sangue negro é o suficiente para ser rejeitada.
Angela é o que conveio a ser a denominado "preto de pele clara" ou "light skins". De tez clara, traços mais afilados e cabelo liso, tem passabilidade, aprendendo desde criança que ser branca é proveitoso, ser branca é como ela diz a diferença entre ser atendida em um hospital ou morrer fora dele. Marcada pela perda de inúmeras oportunidades ao ser exposta negra, nasce seu bordão "dizer que sou negra?! Claro que nunca te disse que sou negra. Por que deveria?" Certamente, porque deveria Angela ser julgada por tal? Ela assim decide, irá embora e será apenas branca. "Sou ao mesmo tempo branca e negra e pareço branca. Por que não devo declarar de acordo com a cor que me trará maior felicidade, prosperidade e respeito?"
Raça é sim um conceito complicado, no Brasil o IBGE faz uma pergunta crucial, "como você se declara?". Quem deve declarar a qual raça, credo, espaço o outro pertence? Raça não é apenas fenótipo, não é apenas cor. E com frequência esse sistema apaga raízes, retira o lugar de pessoas também nem tão brancas, entre o preto e o branco há uma escala de cor, há amarelos, há povos originários, há mistura, há dignidade.
Fauset nos apresenta diversas realidades, a do individuo que pode se passar por branco em sigilo e a daquele que carrega a cor em sua face e dela não recebe nenhum benefício. Se negra então não poderá frequentar certos lugares, terá medo. Se negra não pode receber certos prêmios de arte. Se negra não há disponível certas vagas de emprego. Se negra não pode morar em certos bairros. Se negra deve esperar as vagas que restarem após todos os brancos as terem preenchidos. Angela vê a historia de seu pai, de Virginia, sua irmã e mais para frente de uma colega, Rachel Powell.
Ao se tornar Angèle e rejeitar sua história, Angela descobre que o mundo ainda segue inóspito e injusto, há mais elos na hierarquia de opressão do que a raça, no final das contas ela é ainda uma mulher. Não basta apenas ser branca. E em um mundo que não é seu e sozinha, ser branca começa a pesar. É nesse meio racista que deseja viver? Ser branco significa normalizar essas maldades? Ela é negra, pode e quer calar metade de sua origem?
"Nem tão Branca" retrata o que a sociedade e seu racismo cria, o mal que faz para pretos e o mal que faz para todos os miscigenados. Angela pode ser vista como egoísta e até como racista, mas é principalmente vítima, alvo resultante de um meio que persegue e mata, de um ambiente que faz o sujeito desejar rejeitar quem é, se escondendo para caber onde menores males lhe alcançem. Um livro antigo e ainda assim, profundamente atual. Os apartheids caíram, mas também se remodelaram.