notmuchcompany 01/09/2022
"Uma centena de coisas ruins aconteceram comigo. Devo ficar quieta? Aguentar minha dor como uma boa menina? Ou devo ser muito má e descontar no mundo? De qualquer maneira, não serei amada".
Entre passado e presente, e até vislumbres do futuro, Joan narra sua história pra alguém que ainda não conhecemos, mas que aos poucos vamos imaginando quem seja. Ela nos conta sobre sua infância e vida adulta ao lado de Vic - o cara que é tido como estopim pra toda a história -, e achei interessante que não vemos nada sobre sua adolescência. Na verdade, não vemos nada a partir dos seus dez anos de idade (quando os pais de Joan morrem) até os 27 (quando ela conhece o Vic). Mais tarde, ela começa a intitular seus dez anos como "o ano em que morri", e aí isso passa a fazer sentido, pois ela nos explica como a morte dos pais ocorreu, o que veio bem antes disso, em que lugar de sua vida ela estava, e como isso a impactou.
Devo dizer que Animal é mais um título que é parte da minha saga de unhinged women, e dos que li até agora esse foi o que achei menos unhinged. Isso não fez com que a leitura fosse menos prazerosa ou proveitosa, mas admito que fiquei esperando mais da protagonista, a Joan. Mais raiva ou mais explosão, já que todo o livro foi escrito em cima de uma promessa de vingança e assassinato, e de "tá, agora deu pra vocês, vou mostrar ao que eu vim". Mas, eu entendi ao final, que é um livro que fala sobre dor, mais do que tudo. Dor e abandono, e relações de poder.
O fato é que Joan foi violentada de várias maneiras, por vários homens, e essas violações tiveram inúmeros desdobramentos. Essa história é sobre isso. Sobre como a mulher acaba pagando pelos erros dos homens e como todo homem é um violador em potencial - sabendo ou não, querendo ou não. A forma como a autora vai revelando isso pra gente, através dos eventos da vida de Joan, de como as outras pessoas a vêem, sua relação com outras mulheres, é muito interessante. É uma ficha que vai caindo aos poucos. Então eu comecei lendo esse livro achando que veria sangue e vingança e uma mulher dominada por fúria, mas encontrei um relato singelo, sutil por vezes, agonizante por outras, de alguém que poderia estar ao meu lado, carregando todas essas coisas dentro de si e que eu nem saberia se não fosse esfregado na minha cara.
Ao mesmo tempo, é uma situação onde tudo parece estranho a mim, com sensações e sentimentos terceirizados, mas familiar de um jeito incômodo. Que mulher não passou por algumas das violações que a Joan passou? Pessoalmente, acho que ela aguentou coisa demais, tempo demais, até alcançar o limiar do inferno que, ela mesma aponta como sendo "só mais um degrau". Só mais um passo no caminho de uma mulher.
A linguagem é uma parte interessante da história. Joan narra em um tipo de fluxo de consciência, se remetendo à esse pessoa que a lerá, e faz uso do discurso indireto livre ao ponto em que às vezes é difícil saber se ela está falando sobre alguém ou sobre si mesma. Deve ser parte do que a própria Joan fala sobre a incapacidade que as pessoas têm de tolerar histórias tristes, que para serem digeridas, elas precisam ser comestíveis.
"Eu senti paz, veja, porque aceitei a loucura. E ainda assim, não acredito em loucura. Uso a palavra como um atalho. O mundo chamará de loucura. Você não consegue convencer as pessoas do contrário".
Recomendo para quem gosta de histórias minimalistas, um tanto brutais, que questionam o lugar da mulher na sociedade, e pra que gosta de mergulhar na mente de personagens, porque é bem intimista e pode se tornar inquietante por vezes.