Interfaces

Interfaces André Mellagi




Resenhas - Interfaces


2 encontrados | exibindo 1 a 2


Alexandre Kovacs / Mundo de K 24/04/2021

André Mellagi - Interfaces
Editora Patuá - 112 Páginas - Projeto gráfico, diagramação e capa de Luyse Costa - Lançamento: 2019.

André Mellagi nos apresenta uma antologia de contos sobre desaparecimentos e desencontros, isolamento e inadequação. Enfim, tudo aquilo que vivenciamos em um mundo idiotizado pelas redes sociais, no qual permanecemos conectados e, contudo, cada vez mais solitários. Os personagens aqui buscam algum tipo de ilusão para as suas próprias desesperanças, um alívio qualquer que os faça esquecer por algum tempo da rotina, mesmo sabendo que, na manhã de uma quarta-feira de cinzas, "todos dormem e os gritos das úlceras ainda adormecem no tique-taque de bombas-relógio", uma tentativa de fugir de uma vida cujo único objetivo é sobreviver.

Com base em uma variedade de técnicas, o autor surpreende pela forma e conteúdo. Em Interfaces, conto que empresta o título ao livro, uma sequência de parágrafos em terceira pessoa, sem qualquer diálogo, conecta os personagens por meio de suas atividades no mundo virtual, tendo como ponto em comum um vídeo postado nas redes sociais sobre um caso de combustão espontânea de um homem de 35 anos em um shopping na Índia. Já em Ex-Officio, a narrativa é construída a partir de diálogos velozes e ambientada no submundo do tráfico de drogas, onde uma dupla de criminosos auxiliados por uma atriz pornô, tenta remediar as consequências de um "serviço" mal feito.

Em Anamnese, referência a um termo médico que significa o levantamento do histórico de uma doença feito pelo médico durante uma entrevista, uma caudalosa e vertiginosa confissão da protagonista domina toda a narrativa em primeira pessoa, sem interrupção, do início ao final do conto. O leitor logo perceberá que os males desta mulher são muito mais relacionados à alma do que ao corpo e, ao longo da consulta, ficará conhecendo a sua difícil trajetória.

"Bom dia, doutora, fico feliz que consegui chegar a tempo, o trânsito está horrível hoje e a sua secretária foi muito simpática em pedir a confirmação da consulta. Eu não iria perder de jeito nenhum, mas sabe como é essa correria, um dia a gente tem que levar a filha pro ballet, outro dia o marido pede uma conta pra pagar e sou péssima para essas coisas de internet, vou na agência mesmo e não confio em mexer com dinheiro no computador, cada história que a gente ouve... mas nunca aconteceu nada comigo, graças a Deus, e nessa correria a gente acaba esquecendo o que é realmente importante, e como disse, não iria jamais perder a consulta com a senhora. Aliás, prefere que eu te chame como? É tão novinha, senhora não cai bem, prefiro chamar de doutora, embora minha filha diga que doutora é só pra quem tem doutorado, a senhora tem? Que bobeira a minha, isso não importa, a senhora, perdão, a doutora é formada, é médica, vim aqui tratar de minha saúde e se quisesse alguma doutora de doutorado teria ido à universidade e não em seu consultório, mas como sou mesmo das antigas, vou chamá-la de doutora, tudo bem?" (p. 16) - Trecho do conto: Anamnese

Em Revelações, a fuga da realidade está na religião e todos os acontecimentos na vida do personagem são norteados pelos misteriosos desígnios do Senhor, até mesmo uma queda da energia elétrica pode ser o resultado de uma decisão divina: "Que profeta teria premeditado a decisão do Senhor em nos subtrair a dádiva da eletricidade?". A narrativa me faz pensar como o fanatismo se oferece como uma forma de preencher o vazio interior e a solidão, uma espécie de vício como outro qualquer; é quando a felicidade pode se transformar em um estranho pecado.

"Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Hoje recebi outra provação do Senhor. Quando a síndica veio me avisar da interrupção de energia das nove da manhã às duas da tarde, para manutenção da rede elétrica na rua, compreendi que eu precisaria tomar meu banho mais cedo e que deveria sair de casa. Logo pensei, para onde deveria ir, se não tinha nada marcado com médico, juiz ou advogado? Sem luz em casa, em meio ao silêncio do liquidificador e à tela escura da televisão, o Senhor me levou de volta à humilde constatação de que não somos nada diante de um interruptor impotente. O celular marcava sua sobrevida em 43 por cento de carga. Resolvi sair para comprar velas, pois ainda que a luz voltasse em pleno dia, nunca se sabe quais os sinais que o Senhor coloca em nosso caminho. Hoje um blecaute, amanhã queimamos nossos móveis para nos aquecermos em uma nova era glacial." (p. 68) - Trecho do conto: Revelações

Em O testamento de Ícaro, o autor encontra uma nova abordagem para o desejo mitológico de voar: "Ícaro subiu o elevador do prédio mais alto, e do último andar olhou ao redor o continente de titãs de concreto. Mas ainda faltava muito para arranhar o céu, era preciso dar um salto decisivo para o alto." E o que dizer de O que perdemos no caminho, uma espécie de triste fábula moderna na qual a morte promove o reencontro de duas amigas de infância afastadas há alguns anos. Marisa e Irene, duas pessoas que "passaram a se desconhecer" com o tempo.

"O perfil atualizado de Marisa anunciava a data da missa de sétimo dia de seu falecimento. Com austeridade nas palavras, convidava amigos e parentes, sábado na capela. Quanto tempo Irene não via uma postagem de Marisa? Só então surgiu o estranhamento ao ler que a irmã dela era quem assinava o anúncio. E que Marisa estava morta. E que não tinha notícias dela há dois anos." (p. 102) - Trecho do conto: O que perdemos no caminho

Sobre o autor: André Mellagi nasceu em São Paulo, é psicólogo e escritor. Lançou em 2017 seu primeiro livro de contos Bricabraque pela editora Patuá. Participou de diversas coletâneas literárias online e impressas. Foi aluno do Curso Livre de Preparação do Escritor (CLIPE), pela Casa das Rosas (SP), em 2018. Vencedor do 31º Concurso de Contos de Araçatuba (2018) com o conto “Anamnese” e finalista do Prêmio Off-Flip de Literatura (2019) com o conto “Interfaces”, presentes neste livro.
comentários(0)comente



Marianne Freire 19/05/2024

O difusor de tempo e de linguagem de André Mellagi não é estéreo e se verticaliza se atamanhando a medida que o autor estuda as suas potencialidades em versatilizar a palavra em Interfaces, livro a qual ele se destaca como escrito inventivo em experimentar o fantástico e o realismo no híbrido de horizontes literários. Com uma narrativa nada trivial sobre a vida, os personagens apesar de tudo tem características triviais e espontâneas. O enredo psicológico e racional da implantação de nada utópico, mas sim dialeticamente concreto. O óbvio pode ser uma Interface potencializada para um rumo maior da história. A existência compensatória de influência requer abertura para a palavra evoluir e é isso que André faz: faz a palavra evoluir. A descoberta de quem não toca a superfície para tocar as Interfaces. Essa conjugação de fatores fazem da obra construir um modo sofisticado de justa medida para o leitor inteligente apreciar boa literatura.

Interfaces é uma obra que não faz silêncios, que reverbera pontes com o leitor e dá cadência de atenção com boa matriz linguística. A experiência é de atmosfera material-sensorial com um cuidado de lentes ficcionais de um universo de espectro semântico, fazendo com que a obra se torne uma ficção de literatura contemporânea agradável e de corpo crítico bem escrito.

Interfaces fica entre o formal e o informal, sai do lugar mudo e faz uma canção com a medida empenhada da palavra, comum fluxo de consciência aberto e permitido a sentir e a viver a obra.

#literaturabrasileira #literaturacontemporanea
comentários(0)comente



2 encontrados | exibindo 1 a 2


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR