Matheus Monteiro 23/12/2021
O horror trágico de Enriquez
Um homem jovem com problemas cardíacos viaja pelas estradas do nordeste argentino com o filho pequeno de carro. O que poderia ser uma viagem tranquila, não demora revelar um tom assombroso: ambos conseguem ver espíritos em hotéis, em uma noite há uma invocação de um demônio e ambos estão em constante vigilância. Algo os persegue, enquanto o pai tenta encontrar uma solução para o destino do seu filho em meio a uma Argentina assombrada pela ditadura militar e uma seita adoradora de uma entidade sombria que os quer. É assim que Mariana Enriquez começa seu livro mais ambicioso e complexo.
Sempre houve algo de trágico na prosa de Mariana Enriquez, escritora argentina que cada vez mais se consolida como um dos principais nomes da literatura de horror da América Latina. Em As Coisas que perdemos no fogo, sua coletânea de contos, as investigações narrativas observam as chagas sociais e os impactos disso na rotina e psicologia de seus personagens. Do sentimento salvador da burguesia, passando pelo trauma da ditadura argentina e misoginia, os contos flertavam com o horror do cotidiano tensionado em estranheza e macabro. Em Este é o Mar o foco era a tragédia do mundo do rock, o clube dos 27, os ídolos quebrados adorados que se salvavam milhões com suas músicas, se afundavam em suicídios e overdoses. A tragédia é uma característica da prosa de Enriquez, reflexo do próprio gênero a qual se debruça (afinal, o horror não é nem de perto um gênero a qual se associa sentimentos positivos ou tranquilos. Personagens são feitos de vítimas, vidas são atormentadas e nem sempre há um final feliz), mas se antes havia um horror trágico, é em Nossa Parte de Noite que Mariana investiga a tragédia do horror.
Dividido em seis partes, posicionadas em temporalidades não-lineares, e com uma voz polifônica (as seis partes tem vozes narrativas distintas, sendo de personagens diferentes), Nossa Parte de Noite é bem mais complexo do que o rápido resumo descrito no início dessa crítica. Se a primeira vista se trata de uma única jornada, é mudando o ponto de vista dos personagens ao longo do livro, que Mariana tece sua análise sobre a tragédia, sendo este o maior horror do livro. Sim, há mãos fantasmas, rituais aterrorizantes, assassinatos e portas que dão a um outro mundo perverso e faminto. O horror e suas diversas manifestações estão presentes no livro, mas a coisa que mais salta as páginas é o sentimento de uma série de vidas entrelaçadas e destinadas a dor e a desgraça por entre as décadas. Ao contar sua história não linearmente, e trazer perspectivas de diferentes décadas, Mariana conta a história de pessoas que ao terem se aproximado do Sobrenatural, criaram um ciclo de dor e sofrimento que vai arrastando cada vez mais e mais pessoas.
E que dor. E que sofrimento. Definitivamente, o livro mais pesado da autora até então, Mariana cria uma obra perversa, maligna, violenta e perturbadora. Existe uma crueldade que perpassa todos os personagens ao longo das décadas. Das atrocidades cometidas pela Ordem a qual Juan, o pai do garotinho citado no começo do livro, serve como médium; assassinatos em massa; a própria relação perturbadora do pai com filho, uma relação difícil e que beira ao abuso (e desconcertante, porque há, por incrível que pareça, um sentimento de proteção e amor paternal também), violência, traumas infantis que deixam cicatrizes por anos. É um livro que não poupa o leitor, seja em mostrar a crueldade das relações humanas, como de mostrar cenas perturbadoras em um detalhismo sádico. É denso, é perverso, definitivamente não se tornando uma leitura fácil, assim como Juan não apresenta um comportamento de abertura de carinho para com seu filho.
Mas há uma compensação impressionante, quase uma troca sobrenatural que a autora faz com o leitor ao apresentar um livro que pulsa. Nossa parte de noite pode não ser um livro que se permite amado. Sua atmosfera densa e sua escrita dramática de ritmo calmo, de queima lenta, exige comprometimento do leitor, mas também oferece riqueza cultural e narrativa. Cultural porque a ambientação que a autora cria nunca foi tão detalhada como nessa obra. Da cultura argentina, com seus santos que cruzam a espiritualidade cristã e indígena guarani; ao detalhe da rotina dos jovens ricos britânicos na década de 70, com suas viagens de ácido e arcadismo intelectual e curiosidade com o paganismo; ao impacto da ditadura argentina no social urbano até a recriação do cenário queer argentino em meio a pandemia de AIDS na década de 80/90, Mariana pulsa detalhes culturais entre seus personagens. É hipnotizante acompanhar a mudança de ambientes e tempos nesse calhamaço, assim como as próprias críticas sociais que marcaram outras obras da autora. A ditadura argentina é mais uma vez apontada como monstruosa, e no perturbador O Poço de Zañartú, a autora faz questão de esfregar a contagem de corpos do regime argentino em uma história escrita em formato de crônica jornalística. A própria Ordem que ilustra a tragédia nunca deixa de ser mostrada como o mais requinte de crueldade que os brancos podem fazer quando se tem poder. Isso também é ser rico, pensei então: esse desprezo pelo precioso e a incapacidade de oferecer a dignidade de nomear. Há também comentários sobre a própria crueldade mórbida da mídia, como mostra o sensacionalismo de mostrar a situação agonizante de uma criança colombiana soterrada há dias morrendo em plena TV aberta, noticiada até o último respiro.
Sobre o horror. Assim como flui entre aspectos culturais, Mariana flui em diferentes imagens sobrenaturais. Não é um livro necessariamente assustador, e sim próximo de uma beleza perturbadora e violenta. Cada parte manifesta o horror sobrenatural de forma diferente, então vemos desde rituais a uma entidade obscura, chacina na vibe Tate-LaBianca, uma peregrinação a um outro mundo obscuro, e casas mal assombradas.
E pensando em casas mal assombradas há uma coisa curiosa para quem leu As Coisas Que Perdemos no Fogo. A personagem Adela retorna, com alguns trechos e o mesmo destino bizarro para esse livro, mas há muitos mais detalhes e Mariana explora ao máximo sua própria ideia como potência dramática. O que poderia soar como um reaproveitamento barato, é mais uma atualização e evolução narrativa, em uma criação de motivação narrativa e geradora de conflito.
Outro ponto a se abordar é como Mariana escreveu uma obra trágica de horror, que em meio a perversidade e crueldade, traz personagens gays e bissexuais e complexos, sem serem reduzidos a estereótipos (o que também os coloca como pessoas com muitas falhas e defeitos) e com importância narrativa.
Nossa parte de noite não é um livro fácil. É propositalmente denso, com um ritmo lento que desbanca em violências e atrocidades cruas, não se segurando em mostrar o quão perverso as pessoas podem ser e o sofrimento que podem infligir e serem infligidas, mas é um quebra cabeça narrativo de diferentes personagens e momentos temporais delicioso de se desvendar, culturalmente complexo, e que atualiza a ideia de tragédia contemporânea. É uma tragédia de horror como poucas já escritas.