spoiler visualizarIsmael.Chaves 17/10/2023
A obra-prima do terror latino-americano
Dizer que Mariana Enriquez é, hoje, um dos principais nomes do terror internacional e, talvez, o principal nome da literatura latino-americana do Séc. XXI, no mesmo patamar de Jorge Luis Borges ou Julio Cortazar, não é nenhum exagero.
E aqui no Brasil não é diferente. Desde o lançamento em português da coletânea “As coisas que perdemos no fogo”, Mariana revolucionou o mercado editorial brasileiro, abrindo as portas para várias outras autoras latino-americanas (como Samanta Schweblin, María Fernanda Ampuero, Giovanna Rivero, Fernanda Melchor e Dolores Reyes) serem traduzidas por outras editoras aqui. Não apenas isso, também influenciou toda uma nova geração de autoras e autores brasileiros de terror e literatura fantástica.
“Nossa parte de noite” é seu livro mais ambicioso, apresentando todos os temas caros à autora em uma complexa história de terror que mistura seitas secretas, deuses antigos, casas assombradas, ditadura militar e temas sociais. Ao conquistar, em 2019, o disputadíssimo Premio Herralde de Novela, na Espanha, podemos também afirmar que é a grande obra-prima do terror latino-americano.
O romance, de quase 600 páginas, é dividido em 6 capítulos que alternam narradores e linhas temporais, bem como estilos. Contudo, é correto afirmar que os dois protagonistas são Juan e seu filho Gaspar.
Parte 1 – As garras do deus vivo, janeiro de 1981
Na primeira parte, conhecemos os dois personagens principais da trama, que percorrerão o romance desde os anos 70 até 90. Juan e seu filho Gaspar cruzam a Argentina de carro, de Buenos Aires até as Cataratas do Iguaçu, na fronteira com o Brasil. São os anos da ditadura militar argentina, soldados armados estão no controle e o ambiente é de tensão. Juan tenta sozinho proteger Gaspar do destino que lhe é designado. A mãe do garoto morreu em circunstâncias obscuras, em um suposto acidente.
Como o pai, Gaspar recebeu o chamado para ser médium em uma sociedade secreta, a Ordem, que se relaciona com a Escuridão em busca da vida eterna por meio de rituais atrozes. Para tais rituais, é imprescindível a presença de um médium, mas o destino desses detentores de poderes especiais é cruel, já que o desgaste, físico e mental, é rápido e implacável.
Essa primeira parte, que por si só já valeria todo o livro, é uma espécie de road trip, onde acompanhamos pai e filho numa longa jornada pela estrada, que inclui a presença de fantasmas em hotéis de beira de estrada, uma capela a entidades estranhas numa cidade pequena, um ritual de invocação a um demônio em um pequeno cemitério à noite, até o grande clímax ritualístico na sede da Ordem, envolvendo um deus antigo e o sacrifício de pessoas. Com clara influência do horror cósmico de H.P Lovecraft, Enriquez vai muito além, sem precisar recorrer à jargões e termos famosos da mitologia do escritor americano – algo muito comum em outras obras influenciadas por esse universo literário. Fãs de The Last of Us, Lovecraft Country, Hellblazer (Constantine) e até Supernatural também devem se regozijar com certas semelhanças na história.
Parte 2 – A mão esquerda: O Dr. Bradford entra na Escuridão, Misiones, Argentina, janeiro de 1983
Temos aqui um pequeno interlúdio, onde conhecemos a história de quando o Dr. Bradford, membro da Ordem, conheceu a família de Juan e percebeu que ele poderia ser o médium tão aguardado pela seita. Como o menino era muito doente e a família muito pobre, o médico propõe adotar Juan e cuidar dele, entregando-o, para a Ordem. Também descobrimos a primeira manifestação de poder de Juan ao invocar a Escuridão, o que deixará uma marca permanente no Dr. Bradford.
Parte 3 – A coisa má das casas sozinhas, Buenos Aires, 1985-1986
Alguns anos após a primeira parte, acompanhamos Juan e Gaspar vivendo em um casarão da família Reyes, mas escondidos da Ordem. Juan finalmente descobriu como se esconder da família de sua falecida esposa, mas isso também custou muito caro para sua saúde já debilitada. Vivendo isolado e quase sempre nas sombras, Juan também se tornou um pai distante e um ser humano mais agressivo. Devo confessar que Juan é o meu personagem favorito do livro, Seja como um poderoso mago ou um homem misterioso e problemático, ele é o personagem mais complexo e bem desenvolvido do romance. Em todos os capítulos ou espaços temporais, mesmo quando não está presente, ele é o grande destaque. Já Gaspar é exatamente o oposto. Apesar de ter herdado o poder de seu pai (oculto na maior parte do tempo) e os mesmos problemas de saúde, é um adolescente frágil, traumatizado, birrento e o personagem menos interessante do romance. Particularmente, acho o capítulo mais fraco do livro, mas há bons momentos, como todas as cenas envolvendo Juan e a reconstrução do conto “A casa de Adele” (do livro “As coisas que perdemos no fogo”), que se torna um elemento extremamente importante no decorrer dos outros capítulos.
Parte 4 – Círculos de giz, 1960-1976
Aqui a narrativa dá um salto de qualidade gigante. Mariana retrocede no tempo e acompanhamos eventos muito importantes do passado de Juan e da Ordem, pelo olhar de Rosário, a filha de uma das famílias fundadoras da seita e futura esposa de Juan. Descobrimos as origens da Ordem, que remontam a séculos, quando o conhecimento da Escuridão foi trazido da África para a Inglaterra e dali se estendeu à Argentina. Há todo um desenvolvimento nesse capítulo sobre os poderes dos médiuns e todos os segredos obscuros da Ordem, assim como importantes revelações que conectam os capítulos anteriores, como as casas mágicas que mudam de forma e só podem ser abertas por um médium, com direito a Juan caçando e lutando com um personagem sádico e assassino (que não vou revelar quem é) pelas entranhas de um desconhecido portal cósmico. Também recebemos algumas chaves para começar a entender o todo da narrativa e importantes pistas do que irá acontecer no futuro. É um capítulo com bastante ação, cenas surreais de magia e rituais, bem como momentos de extrema violência. Também descobrimos o verdadeiro – e macabro – objetivo da Ordem, algo que fará Juan, Rosário, sua irmã Bia e Stephen se unirem para planejar um plano a longo prazo que proteja Gaspar e dê um fim à seita. Comparando com o capítulo anterior, também temos aqui uma trama protagonizada por um grupo de amigos adolescentes, só que muito mais interessante, resgatando a atmosfera da Parte 1, mas em potência máxima. Aliás, esse e o primeiro capítulo, sem dúvida, são minhas partes favoritas do romance.
Parte 5 – O poço de Zañartú, por Olga Gallardo, 1993
Aqui temos outro rápido interlúdio que enriquece ainda mais a mitologia e os mistérios do romance. Na forma de crônica, somos guiados por uma jornalista que busca descobrir o que, de fato, aconteceu em no estranho episódio do desaparecimento de uma criança dentro de um antigo casarão em 1986. Esse capítulo é outro que, sozinho, já daria um ótimo conto, mas ele adiciona camadas e se conecta de forma incrível com o restante da narrativa, fornecendo mais revelações aterradoras para os leitores, inclusive na persona misteriosa de Juan. Além disso, embora o contexto da ditadura militar argentina seja um elemento em segundo plano no livro, aqui temos o maior vislumbre desse contexto histórico, através de uma abordagem crua e devastadora. Mariana sabe muito bem explorar o terror real e ela não poupa detalhes.
Parte 6 – As flores negras que crescem no céu, 1987-1997
Finalmente, chegamos ao desfecho com todas as pontas soltas sendo amarradas. É incrível como, apesar de criar vários plots e subtramas e diferentes linhas temporais, Mariana Enriquez não deixa passar nada e conecta todas as pistas e símbolos que foram sendo entregues ao leitor, no decorrer dessa longa na epopeia aterrorizante. Mesmo acontecimentos, aparentemente isolados, no primeiro capítulo – como uma foto – retornam montar esse desfecho.
Inicialmente, acompanhamos a história de Gaspar exatamente de onde a Parte 2 terminou, apresentando as consequências daquele fatídico dia para ele e seus amigos. Traumatizado e com a saúde física e mental abaladas, o jovem agora vive com o tio brasileiro e não quer ter contato com ninguém. Já seus amigos também tem seus próprios demônios para lidar, e alguns deles se tornam peças importantes nesse tabuleiro místico. Os anos passam e, inevitavelmente, o grupo volta se reunir. Aqui, como na Parte 3, há uma quebra de ritmo. Confesso que os capítulos protagonizados por Gaspar não são os meus favoritos. E por se tratar do último capítulo do livro, a história se perde um pouco nos dramas adolescentes dele e seus amigos, com algumas situações que travam a narrativa e não acrescentam muito à trama principal. Por conta disso, quando surgem as últimas revelações e o grande confronto final se aproxima, fiquei com a impressão de que tudo foi resolvido apressadamente e não teve o devido impacto esperado.
Apesar disso, a jornada vale muito a pena, com muito mais pontos positivos a se considerar. E, como qualquer obra literária, cada leitor terá uma experiência pessoal diferente (tenho amigos que, ao contrário de mim, adoraram os capítulos protagonizados por Gaspar). Uma coisa é certa: é impossível passar incólume por esse livro. São tantas camadas ricas e bem estruturadas, com diferentes temas e surpresas, que tornam esse romance um verdadeiro acontecimento na Literatura e dá vontade de passar dias ou anos conversando sobre ele, sem que os seus mistérios se esgotem. E mesmo sendo um calhamaço de quase 6oo páginas, não dá vontade de interromper a leitura até saber o desfecho. Mariana Enriquez tem uma criatividade impressionante e sua escrita é muito envolvente.
Repito: trata-se de uma obra-prima do terror e da literatura latino-americana. Um romance perturbador e deslumbrante que merece estar na estante de todos os leitores de diferentes gêneros.