Aione 28/10/2011 Marta é uma garota no primeiro ano de faculdade que sofre pelo amor de João desde os anos do Ensino Médio. Mesmo com sua mudança de vida, indo morar em uma cidade maior com suas duas melhores amigas, seu sentimento permanece imutável. Mas Marta não é como qualquer garota de sua idade; Marta é bipolar.
Imagine um livro onde os fatos acontecidos não são os mais relevantes na obra, mas sim a exploração do mundo interno das personagens, de seus sentimentos e pensamentos mais íntimos. É o que ocorre em Marta, primeiro romance de Breno Melo, publicado pela Editora Schoba.
A narrativa do autor me prendeu desde as primeiras páginas. É direta e mostra as cenas de maneira, muitas vezes, fria, principalmente ao se tratar das personagens secundárias. Os diálogos são escritos formalmente e não correspondem ao coloquialismo. Isso, entretanto não os tornam artificiais em momento algum, principalmente porque a história se passa na Argentina e as falas trazem algumas expressões e construções próprias da língua espanhola. Além disso, lembrou-me, diversas vezes, a de Machado de Assis, pela interação ocorrida entre narrador e leitor, e pelas várias referências do primeiro ao livro.
"Sim, sim; o leitor tem razão. Toda razão. Talvez soe estranho (...)"
página 12
"Mas voltemos àquela garota. É ela quem me leva a escrever esse romance."
página 13
Logo no prefácio, Breno especifica quatro tipos de leitura possíveis do livro: a primeira, popular, feita por leigos, pode ser realizada por qualquer pessoa; a segunda, a médica, é feita por profissionais a fim de analisar os sintomas e as características que possibilitam o diagnóstico de Marta como bipolar de grau I; a terceira, filosófica, é feita por profissionais e estudantes; e, por fim, a pessoal, é feita por bipolares que podem se identificar com a personagem .
Ao ver a sinopse, acreditei que a bipolaridade de Marta seria citada e explorada. Entretanto, Breno nos conta o fato na sinopse e prefácio e só. Por ser leiga no assunto, caso não fosse avisada da doença, jamais a teria percebido. E esse foi um de seus melhores recursos: o leitor deve buscar as características bipolares na personalidade da protagonista, elas não são entregues de bandeja.
Um dos possíveis tipos de leitura é a pessoal, a fim de buscar identificação entre os bipolares, como explicado acima. Entretanto, como a obra é interna demais à Marta, a aproximação entre alguns de seus sentimentos e pensamentos é possível a qualquer um que já sofreu por amor. Inclusive, identifiquei um hábito comum entre eu e Marta: a busca pela compreensão do que está sendo sentido, a procura do porquê da manifestação de certos sentimentos. O que torna Marta diferente, portanto, é a intensificação da maneira de sentir da protagonista e a forma pela qual tal exacerbação afeta sua vida e atitudes. Seu amor, aqui, beira a obsessão.
Uma característica que me agradou enormemente na obra foi a sua fundamentação teórica a fim de analisar os sentimentos de Marta. Diversas vezes, a narração da história é interrompida para que seja fornecido algum conto mitológico ou um fato histórico ou a teoria de algum filósofo sobre o assunto em questão. Não só isso, são fornecidos dados de obras de arte, inclusive da literatura, e dos artistas que a fizeram, tudo se conectando ao mundo interior de Marta. Há, também, a transcrição de algumas poesias durante a história.
Em dado momento, o narrador classifica elementos da obra como pertencentes ao Realismo, o que fez sentido para mim, já que a escrita havia me lembrado Machado de Assis, maior representante brasileiro desse movimento literário. Porém, também identifiquei elementos do Romantismo, movimento que precedeu o Realismo: a exacerbação dos sentimentos de Marta, o amor idealizado e inatingível, a aproximação entre o estado de humor da garota com elementos da natureza, como mostram os trechos abaixo:
"Para Marta, porém, o céu tornou-se mais azul e o sol mais quente do que ela havia podido perceber uns minutos antes, andando pela Avenida Éden.
Diante do café, sentiu que se abriam novamente para ela os potões do Paraíso, cuja chave inesperada era aquele pedaço amassado de papel, introduzido às presssas no bolso de sua calça."
páginas 46 e 47
"Enquanto isso, lá fora, caía a primeira neve do inverno em Córdova, como não costumava acontecer.
Era um belo dia, ainda que incomum ou melancólico."
página 155
Breno foi cuidadoso e sutil inclusive com a escolha da capa do livro. Ela não é aleatória, ao contrário, fornece uma pista do conteúdo e desfecho da obra. Mas, para entender, é preciso fazer uma pesquisa sobre a história de seu artista e somente a recomendo após a leitura ter sido finalizada, a fim de evitar algum spoiler. Confesso que minha curiosidade foi maior e fiz a pesquisa antes de ler o livro, portanto, não me surpreendi com o desfecho. Mas isso não modificou em nada meu agrado pela leitura, li as páginas finais como aquela tensão frenética no virar de páginas para concluí-la e descobrir sua finalização. Outra sutileza é dada pela incorporação do nome de bipolares famosos pela obra.
Somente um ponto, para mim, ficou um pouco em aberto na história. Em alguns fatos surgidos, mais especificamente dois, senti falta de uma maior exploração. Um é uma preocupação de Marta originada quase ao final da história e que não é concluída, o leitor fica sem a resposta para ela, pelo menos de forma direta. Como na questão da bipolaridade, acredito que Breno tenha deixado as pistas nas entrelinhas para que o leitor identificasse as respostas. A outra questão foi a que leva ao desfecho. Seu desenvolvimento, para mim, foi rápido e repentino e não consegui identificar sua origem, já que os fatos anteriores são contraditórios a ela. Porém, deve-se levar em consideração que toda a história é contada sob o ponto de vista de Marta, ainda que essa só seja responsável pela narrativa em alguns trechos. Assim, tudo o que sabemos sobre a questão é o que Marta sabe, e só podemos supor algo a partir do que ela vê e sente.
De um modo geral, o enredo é simples e sem grandes acontecimentos. Vista superficialmente, e analisada sob a ótica popular, conta apenas uma parte da história de uma garota apaixonada, mesclada com características habituais das atitudes e do quotidiano de uma jovem adulta. O que enriquece a obra e a diferencia, além de ser seu foco, é a exploração do mundo interno da protagonista e a sua fundamentação teórica, além dos sutis recursos utilizados por Breno a fim de conduzir a identificação de alguns elementos e o próprio desenvolvimento da história.
Fiquei interessada pela leitura desde que vi o livro pela primeira vez e não me decepcionei em nada, mesmo com minha expectativa do que encontraria na história ter sido diferente do que ela realmente é. Só tenho a agradecer ao autor pela parceria e pela oportunidade de leitura. Alguns livros me conquistam pelos sentimentos despertados em mim enquanto os leio. Outros, como Marta, me ganham pelas análises possibilitadas pelo autor. O livro, apesar de explorar os sentimentos da protagonista, é um romance estritamente racional, como os romances Realistas o são, e mexe diretamente com essa parte do leitor.