Lucas 20/05/2023
O impeachment como uma ferramenta drástica: dissecação histórica, jurídica e política do instituto
A figura do impeachment, obscura em boa parte da história universal dos regimes republicanos tornou-se nada incomum no cenário político brasileiro nas últimas três décadas. Num país onde efervescências políticas sempre existiram (de forma mais intensa nos últimos dez anos, inegavelmente), o instituto de impedir ou interromper a ocupação de cargo público do Executivo ou do Judiciário por alguém com eventual inaptidão para o exercício de suas funções é constantemente usado como instrumento para vinganças, terceiros turnos eleitorais e muitas outras disfunções.
Por si só, o impeachment é um procedimento complexo, pois deriva de dois mundos intrincados e que se confundem: o jurídico e o político. Num país com um arcabouço legal tão vasto, capaz de oferecer múltiplas interpretações sobre um mesmo dispositivo legal e, ao mesmo tempo, composto desde a redemocratização de uma capilaridade assustadora de legendas partidárias, negociatas cinzentas e outros elementos nefastos, torna-se um desafio e tanto discorrer sobre o impeachment abarcando essas duas abordagens imprescindíveis.
Nesse sentido, é ainda mais louvável o trabalho de Rafael Mafei, professor de Direito da USP que lançou em 2021 o livro Como Remover um Presidente. Grande sucesso contemporâneo nesse tipo de literatura, a obra sai de uma toada predominante jurídica para alcançar um campo mais universal, através de um estilo informativo, com vieses técnicos e, acima de tudo, claro e impessoal.
Mafei vai até os primórdios do impeachment, na Inglaterra medieval do século XIV. A partir de novas cobranças de tributos por parte da Coroa britânica (para financiar a famosa Guerra dos Cem Anos, travada contra a França), o que hoje poderia ser considerado o Parlamento passou a questionar a conduta de certos nobres que administravam as finanças britânicas. Nisso, foram descobertos desvios de finalidade e a medida tomada foi afastar esses indivíduos dos seus cargos, o que era inimaginável dentro daquilo que se entendia como pensamento político ou gestão pública. Era o nascimento do instituto: é preciso que o indivíduo representativo de determinado poder seja afastado se estiver usando a coisa pública de forma totalmente inversa àquela legalmente aceita, seja em benefício próprio ou de terceiros. A segunda parada deste levantamento histórico de parte do autor é nos Estados Unidos, onde se teve o primeiro processo de impeachment conhecido numa democracia: o presidente Andrew Johnson (1808-1875), que sucedeu Abraham Lincoln (1809-1865), sendo vice deste. Por não acatar boa parte das medidas de reconstrução propostas pelo seu sucessor (que foi assassinado ao fim da Guerra Civil norte-americana), Johnson entrou em conflito com o congresso, que votou seu impedimento (a qual não se consumou por uma margem mínima na votação do Senado).
Depois, o autor dirige seu escopo ao Brasil. A figura do impeachment por aqui, popularizada especialmente com a deposição de Fernando Collor de Mello em 1992, é muito mais antiga: nos primeiros anos da República, já havia sido aventada a possibilidade de impedimento de Floriano Peixoto (1839-1895), segundo vice-presidente do país. Posteriormente, o impeachment passou por idas e vindas constitucionais, algumas vezes foi sugerido pela opinião política, houve a promulgação da chamada lei do impeachment (lei nº 1.079/1950, dissecada pelo autor ao longo do livro) e a Constituição Federal de 1988 abrigou e firmou o instituto. Nesse meio-tempo, o livro destaca de forma louvável em poucas páginas um dos pontos menos conhecidos da história republicana brasileira: os desencontros políticos e legais ocorridos no final do mandato de Café Filho (1899-1970) em 1955 e a passagem de poder para Juscelino Kubitschek (1902-1976), a qual gerou protestos políticos, impedimentos e uma tentativa frustrada de golpe militar.
Tudo isso é um grande preâmbulo, que ocupa cerca de 30% das páginas de Como Remover um Presidente. A partir daí, Mafei detalha os dois processos de impeachment mais famosos ocorridos por aqui: o do já supracitado Fernando Collor de Mello (1992) e o de Dilma Rousseff (2016). É preciso delimitar até aqui o escopo da resenha: o autor é preciso, amplo, didático e imparcial para descrever esses dois casos, sempre sob o ponto de vista político e jurídico. É destacável, diante disso, as falhas jurídicas nesses processos, que não respeitaram prazos e nem certos ritos de defesa (especialmente no caso de Collor, onde os procedimentos de impedimento ainda não estavam tão solidificados no ordenamento jurídico nacional pós-constituição de 1988).
Os dois casos tiveram sutis diferenças de objeto: enquanto Collor agiu de forma premeditada em desvios, falsificações de empréstimos e vários outros delitos (além de ter limitado os saques da poupança de todos os brasileiros para o controle da inflação, o que lhe garantiu ainda mais aversão posterior) através de PC Farias (1945-1996), um traficante de influências, Dilma Rousseff foi impedida em função de pontuais atrasos de repasses do Tesouro Nacional aos bancos públicos para pagamentos do Governo Federal (como os de programas sociais); os bancos, notadamente a Caixa Econômica, para fazerem frente a essas faltas de caixa recorriam a empréstimos bancários imprevistos no orçamento. Ou seja, havia uma maquiagem contábil nas contas públicas e uma oneração de dívidas dos bancos públicos. As chamadas "pedaladas fiscais" aconteciam eventualmente em outros governos, mas no caso de Dilma, especialmente ao fim do seu primeiro mandato, foi algo mais generalizado e recorrente, o que configurou o chamado crime de responsabilidade orçamentária, previsto na lei nº 1.079/50.
Por ser mais recente, o impeachment da presidente em 2016 é o escopo da obra e nele o autor disseca ainda mais profundamente o contexto para que um processo dessa natureza floresça. Se o impeachment possui vieses políticos e jurídicos, conforme já destacado, ele depende de outros pontos para vingar: momento econômico ruim, isolamento político, oposição barulhenta, mídia patrocinadora e comoção popular. Caso estes pontos trabalhem conjuntamente, um impeachment ocorre mais facilmente e no caso de Dilma Rousseff eles foram determinantes. Se no âmbito legal Dilma cometeu crimes de responsabilidade (que deliberados ou não, são delitos, apesar de gerarem controvérsias específicas ao caso no meio jurídico), na esfera política Mafei destaca algumas incongruências, especialmente relacionadas à Operação Lava Jato, que vivia seu auge naqueles meses e a explícita lavagem de mãos da presidente para que a operação trabalhasse sem restrições. Políticos como Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados, o senador Romero Jucá ("acordo com o Supremo, com tudo") ou o próprio vice-presidente Michel Temer, sentiam-se ameaçados e claramente usaram do impeachment como um instrumento político. Em suma: é tola a discussão de que o ocorrido em 2016 foi golpe ou não (qualquer abordagem minimamente séria nem deveria se ocupar mais disso, o processo seguiu as previsões legais e talvez a aberração mais gritante tenha sido a não observância de um dispositivo constitucional que previa a perca dos direitos políticos do ente impedido por oito anos, em função de um destaque da matéria previsto apenas no regimento interno do Senado), mas jamais pode ser ignorado o caráter político do processo, motivado por justificativas bem obscuras. E é fascinante a análise (cerca de 15 páginas) que Mafei apresenta sobre esse ponto, ponderando muitos dos argumentos que defendem ou negam a tese do "golpe".
No epílogo, Mafei olha para o futuro de então e monta um robusto levantamento das razões que poderiam ter causado o impedimento do ex-presidente Jair Bolsonaro. Não cabe aqui comentar a respeito (seria alongar-se ainda mais diante de tantos absurdos vistos nos últimos anos, que não se relacionam com outros absurdos atuais), mas a conclusão prática é reforçada: se um governante possui uma espessa blindagem no legislativo, o contexto econômico não é caótico e inexiste uma dominante comoção popular, não há crime de responsabilidade cujo julgamento prospere. Falha ou não, é essa a realidade, um dos inúmeros pontos que o regime democrático precisa aprimorar.
O impeachment é um processo traumático, de exceção e que deveria ser não o início de celebrações mais efusivas, mas sim um ponto de reflexão, de reforma das instituições que nos governam. Rafael Mafei ensina-nos, através de um livro claro, didático e nada maçante que um procedimento destes é importante demais para se perder em discussões de botequim, tão frequentes ultimamente. Desbanalizar o mecanismo, especialmente diante da vulgarização proposta pelas ações do anterior Presidente da República, é uma das várias ações que a classe política poderia adotar para o arrefecimento de ânimos tão doentios quanto os predominantes nos últimos anos.