Leila de Carvalho e Gonçalves 02/07/2021
Três Livros Em Um Só
No dia 8 outubro de 2020, foi anunciado mais um vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, no caso, uma vencedora, a poeta Louise Glück, cujo nome foi recebido com surpresa, pois não constava nas renomadas listas de apostas que, em geral, primam mais pelos erros do que acertos, quando o assunto é esse.
Porém, ao contrário dos últimos anos em que as polêmicas escolhas de Bod Dylan e Pete Handke deram o tom, dessa vez o aplauso da crítica foi unânime. Para nós, brasileiros, havia pouco a comentar, pois a obra de Glück estava restrita a poucas traduções de seus poemas que imediatamente ganharam destaque nas revistas literárias e redes sociais.
Foram 8 meses para chegar às nossas livrarias seu primeiro livro, melhor dizendo, seus três últimos livros reunidos num só, totalizando 594 páginas e 83 poemas no original e traduzidas para o português. Sem dúvida, uma edição de encher os olhos, mas que peca por um detalhe, a ausência de uma Fortuna Crítica que contemplasse alguém como eu, o leitor comum.
Apesar da dificuldade do desafio e até atrevimento, segue meu comentário:
* Averno (Tradução Heloisa Jahn)
Publicado em 2006, Averno é o décimo livro de Louise Glück e, reunindo 18 poemas, é a melhor porta de entrada para sua obra, conforme a escritora costuma defini-lo. Isso se deve aos ecos autobiográficos que remetem a infância e a adolescência problemáticas, o que lhe custou anos de terapia e a obrigou desistir da faculdade.
Resumidamente, a seleção gira ao redor do mito de Perséfone, entretanto Glück o ressignifica ao oferecer outra possibilidade para a descida da deusa para o Inferno, ao invés de raptada por Hades, ela o teria seguido de livre e espontânea vontade. Não satisfeita, a autora também altera esse momento, ele foi deslocado da beira de um precipício para o Averno, ?? um pequeno lago de / cratera, / dez milhas a oeste de Nápoles, / Itália; considerado pelos / antigos / romanos a entrada para / o outro mundo.?
Tais intervenções produzem um resultado instigante. Sem preocupação com a métrica e rimas, os poemas exibem inúmeras alusões, metonímias e alegorias a partir dessas diferentes conjunturas, revelando em tom confessional a dor pela mocidade perdida e a angústia pela interrupção dos sonhos que coroariam essa etapa da vida. Porém, assim como Perséfone renasce a cada primavera, a vida também admite recomeços.
Enfim, sombrio e repleto de lirismo, Averno é um livro belíssimo, impossível passar incólume por ele.
As Migrações Noturnas
?Este é o momento em que voltamos a ver / os frutos rubros da sorveira / e no escuro céu / as migrações noturnas das aves. / / Me dói pensar / que os mortos não vão vê-los / ? essas coisas das quais dependemos / desaparecem. / / De que modo então a alma encontra alívio? / Digo para mim mesma: quem sabe ela já não / reclame esses prazeres; / quem sabe lhe baste o mero fato de não ser / coisa tão difícil de imaginar.? (Posição 175)
* Uma Vida no Interior (Tradução Bruna Beber)
Publicado em 2009, Uma Vida no Interior é o décimo primeiro livro de Louise Glück. Somando 41 poemas, ele retrata o dia a dia numa vila não nomeada, aparentemente localizada na região mediterrânea.
Um local onde o trabalho é regida pelas estações do ano, determinado pelo levantar e o por do sol, trazendo à luz uma atmosfera bucólica arranhada pelas emoções arquetípicas dos seus habitantes.
Por sinal, elas chegam impregnadas de uma amálgama de decepção e conformismo que só ignora crianças e adolescentes, à medida que esses sentimentos estão ligados a perda da inocência.
Sinteticamente, a paisagem de Glück surge radiante, sua escrita surpreende pela beleza e, ao dar voz à diferentes personas, como o trabalhador de um moinho, uma caminhante noturna ou um menino que se confessa ao padre, o interesse do leitor redimensiona-se e é difícil largar o livro antes do final.
Cansaço
Dorme o inverno inteiro. / Então acorda, faz a barba ? / demora até que se torne homem de novo, / no espelho, o rosto espetado de fios pretos. // Agora a terra é uma mulher, esperando por ele. / Uma esperança profunda ? é isso que sela a união / dele com essa mulher. // Ele precisa trabalhar o dia inteiro para provar que / merece tudo que tem. / Meio-dia: está cansado, está com sede. / Mas se desistir agora não terá coisa alguma. // O suor que empapa suas costas e braços / é como se sua vida evaporasse de si / sem deixar nada no lugar. // Trabalha feito bicho, depois / feito máquina, sem emoção. / Mas o elo jamais será desfeito, / embora a terra reaja, barbarizada pelo calor do verão ? // Ele se agacha, a terra escorre por entre os dedos. // O sol se põe, vem a escuridão. / Agora que o verão acabou, a terra enrijece, esfria; / na estrada, pequenas fogueiras resistem. // Do amor não sobra nada, / só distância e ódio. (Posição 3166)
* Noite Fiel e Virtuosa (Tradução Marília Garcia)
Publicado em 2014 e composto 24 poemas e prosas poéticas, Noite Fiel e Virtuosa é o décimo segundo livro de Louise Glück e o último até o momento.
Em linhas gerais, seu tema discorre sobre a circularidade da vida, ou melhor, aos 70 anos e após perder a mãe já centenária, a autora apresenta a velhice como uma segunda infância. Um tema que, se não é novo, é tratado com destreza e pungência.
Simultaneamente, para explorar melhor o assunto, Glück inventa uma história sobre dois irmãos que cresceram sob os cuidados de uma tia depois da repentina morte dos pais. O caçula, um pintor já idoso, é quem assume o eu lírica, resgatando as imagens da infância e registrando seu presente, uma criação que faz um instigante contraponto à vida da escritora.
Aliás, o título do livro remete a uma cena de infância desse pintor, quando ele ficava deitado na cama com o irmão e este lia as lendas do rei Arthur. Ao ouvi-lo se referir ao ?cavaleiro fiel e virtuoso? da história, o irmão menor, que ainda não sabia ler, entendia ?noite? [night] em vez de ?cavaleiro? [knight], palavras homófonas em inglês. Este engano transformou ?o cavaleiro fiel e virtuoso? na ?noite fiel e virtuosa?.
Usando versos livres, o livro agrupa memórias antigas e recentes e seu espaço temporal é tratado espacialmente: os eventos do passado ocupam o primeiro plano, enquanto os mais recentes surgem mais afastados, até mesmo apequenados e borradas. Porém, quem reina absoluta é imaginação da escritora e um bom exemplo é, ao reportar a uma história de cavalaria, ela traz à tona uma bela metáfora para a Morte que não só dá o tom do livro como o intitula. Enfim, entre os três, o mais acessível ao leitor.
Teoria da Memória
Há muito, muito tempo, antes de eu me tornar um artista angustiado, atormentado pelo desejo, mas incapaz de criar laços estáveis, muito tempo antes disso, fui um glorioso soberano que uniu todas as pessoas em um país dividido ? foi o que me disse a vidente ao ler a palma da minha mão. Estou vendo coisas extraordinárias, ela falou, que estão à sua frente, ou talvez atrás de você; é difícil dizer ao certo. Mas, afinal, acrescentou ela, que diferença isso faz? Agora você é uma criança de mãos dadas com uma vidente. Todo o resto são só hipóteses e sonhos. (Posição 5287)