dani 24/08/2023
Incoerências e incógnitas
"Com a janela aberta, o ar quente, mais denso que um edredom molhado, forçava a entrada, como uma massa corpulenta, na minúscula casa de um só cômodo sem ventilador nem ar-condicionado [...]"
No momento em que escrevo, os termômetros apontam uma temperatura de 33ºC e as autoridades em meteorologia emitem alerta laranja, devido a baixa umidade do ar. Mesmo que seja difícil traçar uma comparação com o verão coreano retratado no livro, com temperatura chegando aos 39ºC e umidade sufocante, não posso dizer que o clima aqui no Centro-Oeste brasileiro esteja agradável. Também não está nada propício para atividades que exijam raciocínio lógico (como escrever uma resenha).
Nessa empreitada ousada de Bae Su-ah em forma de livro, seguimos Ayami, ex-atriz que trabalha em um teatro de áudio. Sua função é apresentar brevemente a peça do dia e em seguida colocar o respectivo disco. Em geral, o pequeno público consiste em visitantes com deficiência visual e estudantes que estão ali para cumprir algum trabalho escolar. A premissa do livro é simples, mas a autora tem um jeitinho sutil de nos manipular, confundir, fazer a mente nos pregar peças, quase beirando um terror psicológico.
Panturrilhas magras com tendões salientes, transmissões de previsão do tempo destinadas a pessoas em alto mar, saias que drapejam como um velho pano de prato, o latido ameaçador de um daqueles cães grandes e pesados como um bezerro, sandálias feitas com tecido de cânhamo trançado de modo grosseiro... Esses são alguns elementos que me deixaram uma forte impressão, pois perpassam e encadeiam levemente a linha narrativa que ameaça desmoronar a qualquer momento. Ou melhor, derreter como um cubo de gelo sob o impiedoso sol de verão.
Facilmente é o livro mais intrigante que li esse ano até o momento. Ainda me pego pensando em alguns trechos antes de dormir. Até despertou em mim medos e angústias que eu não sabia que tinha (talvez o nome disso seja ansiedade). Sob o olhar da autora, o mundo e a existência parecem mais frágeis e efêmeros do que eu considerava.
Bae Su-ah usa a escrita como uma habilidade, um superpoder, capaz de causar colapso e/ou reconstruir realidades e perspectivas. Pessoas, lugares, tempo e memória não passam de incoerências e incógnitas que podem se perder facilmente no labirinto da mente humana.