mpettrus 21/08/2022
O Realismo Mágico das Travestis
Que livro é este que me deixou literalmente boquiaberto? Uma história de vida real sobre um grupo de travestis, apresentada sob a forma de ficção? Um manifesto contra discriminações que dominam certas pessoas quando colocadas face ao outro, aquele considerado ?diferente?? Um livro sobre seres humanos que, justamente, ousam proclamar sua ?diferença?? Um olhar entre antropológico/sociológico lançado pela autora do livro sobre um grupo de excluído pelos ?bons cidadãos? que durante o dia desprezam as travestis, mas que, na calada da noite as cobiçam? Um grito vindo do fundo da garganta de um garoto, que tentou harmonizar seu corpo e sua identidade íntima? A história romanceada de uma jovem travesti argentina que, para sobreviver, torna-se prostituta?
??O Parque das Irmãs Magníficas? da escritora argentina Camila Sosa Villada é um romance que descreve a travessia de uma personagem transclasse que é a própria narradora cuja voz, por vezes, se confunde com a voz da autora. Ela assume a condição de travesti e se une a um simpático grupo que realizou a mesma escolha que ela. Para ganhar a vida tornam-se prostitutas. Ao lado da narrativa de vida da personagem principal aparecem outras narrativas, a de suas amigas travestis. Observa-se também o realismo mágico da América Latina e as ocorrências irônicas, bastantes numerosas no romance.
?Dentro do mundo construído por Villada conhecemos a travesti Camila, narradora em primeira pessoa da história do livro. Ela é a protagonista apresentada em um corpo de homem que seguindo o instinto natural busca torna-lo feminino desde cedo, dentro de suas parcas possibilidades. Enfrentando sua família e o mundo, assume um outro prenome, uma outra identidade. Nessa luta, vai embora para Córdoba, onde, por curiosidade, observa o Parque Sarmiento, local em que será acolhida pelas suas iguais. Onde também conhecemos suas irmãs magníficas.
As irmãs de Camila são: Tia Encarna, a mais velha, aquela que tem cento e setenta oito anos. É a Travesti quem tem a oportunidade de tornar-se mãe de um bebê recém-nascido, abandonado entre folhas e plantas espinhosas do Parque. Um bebê que, acredita-se, seria filho da Defunta Correa, uma espécie de mártir, protetora das prostitutas. Temos María, a frágil, que não consegue falar, só balbuciar coisas confusas. Não é esclarecido se ela é surda. Aqui nesta personagem, a autora pincela o arco dessa personagem de realismo mágico de forma tão brilhante e hipnótica. A personagem sofre tanto que, aos poucos sofre uma estranha metamorfose, transformando-se em uma ave.
?Conhecemos Natalí, sétima filha de uma família que, como reza a maldição, nas noites de lua cheia se converte em lobisomem ou como diz a narradora, de modo tragicômico: ?lobiscate?. Sandra, a travesti mais melancólica de todas, que nos guarda um dos finais mais inglórios da narrativa. Angie, a mais bela, a rainha, a autora de uma frase que impressiona Camila: ?Virei travesti porque ser travesti é uma festa?.
??A Machi Travesti?, exerce um papel importante na narrativa, o de feiticeira e sacerdotisa, era dito que tinha o poder de ressuscitar as moribundas com magia negra. Cito também Patrícia, a manca e A Pato, sem me esquecer de Tia Mara, uma personagem enigmática que prendeu totalmente a minha atenção. Ela mais que travesti e prostituta, era um ser dotado de um estranho poder, bastante independente das outras. A descrição de sua casa mostra um ambiente corriqueiro, mas ao mesmo tempo, estranho. Eu enxergo essa personagem como uma espécie de vidente ou terapeuta, que escuta com atenção e transmite conselhos judiciosos a quem a procura em sua casa. Lá ela é doce e calma; por vezes, na rua, mostra-se completamente indiferente às outras travestis.
?Concretamente, deparamo-nos com uma descrição de Tia Mara que nos lembra a de um ser mitológico, capaz de enfeitiçar todos os homens que, nobremente, construíram uma nação, mas, que morreriam felizes se pudessem se deitar com aquela mulher. Pareceu-me que a autora quis fundir a história dessa personagem com à história da Argentina. Há aqui uma glorificação à pátria, à sua construção que reuniu tantos homens diferentes, todos unidos pelo trabalho são habilmente mescladas alusões sobre o poder sexual dessa personagem.
? Conhecemos também outra maravilhosa personagem: Laura. Curiosamente, ela é mulher e convive com o grupo de travestis, exercendo a mesma profissão de todas: a prostituição. O fato de Laura ser mulher é narrado de um modo que oscila entre a realidade cruel e a poesia. Em uma determinada cena, é feita a descrição dos órgãos genitais de Laura. À poesia crua que se refere à vagina feminina como ?flor carnívora? sucede-se o relato penoso do membro fálico das travestis, escondido, amassado, guardado e a angustiante construção de uma falsa vagina em um corpo masculino, talvez feito às pressas. Poesia e dor se misturam. Esse detalhe é muito importante para o arco que a autora desenvolveu para essa personagem, pois, conhecemos então Nandina, a travesti que constrói uma relação de afeto e amor com Laura, nos trazendo um raro momento de esperança e felicidade naquele mundo permeado de violência e sangue.
? Por fim, quero destacar aqui o incrível realismo mágico das travestis. O estilo da escritora introduz - de forma bem sutil e delicada ? muitas doses de realismo mágico, recurso próprio de escritores da América Latina. Camila Sosa Villada faz reviver, a seu modo, Gabriel García Márquez, Jorge Luis Borges, Isabel Allende entre outros. A escritora argentina introduz esse mundo surreal já nas primeiras páginas do livro, ao mencionar a idade da personagem Encarna: cento e setenta e oito anos. Talvez por isso ela se considerasse ?eterna, invulnerável como uma deusa de pedra?.
? Acredito eu, que tal forma de escrever venha da visão da narradora, de seu ponto de vista sobre si e sobre as travestis que formam o grupo ao qual ela se integra, São feiticeiras, animais, pecadoras, santas e mártires ao mesmo tempo, segundo os imaginários que dominam sua vida e seu povo. Eu simplesmente amo o realismo mágico da nossa literatura latino-americana porque me lembra que a realidade da vida na América Latina escapa à lógica e ao bom senso de outros povos. Talvez por força de tanto penar com a opressão de uns e outros, aqui aprendemos a escapar pelo uso de figuras: metáforas, pleonasmos e, sobretudo, pelo humor.
?A mim, o momento de maior epifania que esse romance me trouxe é quando a protagonista nos revela quem foi seu modelo de ser humano para se espelhar na sua vida futura como pessoa adulta: Cris Miró. Essa pessoa quase mitológica do entretenimento argentino de fato existiu e deve ter inspirado muitos jovens que sentiam a necessidade de passar por uma transformação, sem ainda estar plenamente consciente disso e do que fazer, qual caminho seguir. Do que eu sei, é que Cris Miró foi alguém especial, um ser dotado de muita perspicácia, inteligência e coragem para conseguir vencer e impor seu talento, assumindo que era travesti, em um país machista e católico como a Argentina.
?A vida de uma travesti não é fácil. Tem de suportar a brutalidade dos machos que a procuram, a precariedade financeira, o frio, a chuva e mesmo a fome. A história não se detém especificamente neste ponto, embora ele flutue por toda a narrativa. Nela é exposta - por vezes de modo violento, outras por meio de uma linguagem poética e fluída ? o relato de vida não só da narradora, a travesti-prostituta, mas também o de uma pequena coletividade representada pelas irmãs de profissão de Camila.
Elas, as travestis, que irão, juntas ou sozinhas, enfrentar ?contra o vento e a maré? muitas adversidades para pode ultrapassar as barreiras, sofrendo, apanhando, lutando, mas também, aos poucos, ganhando mais confiança em si ao perceberem que nelas começou a germinar a resiliência, fruto da superação das dificuldades que enfrentaram em sua travessia de vida, como sujeito transclasse.
? Leitura recomendadíssima, bookstan.