Coisas de Mineira 10/03/2022
O Espião e o Traidor, do jornalista britânico Ben Macintyre, é um livro de não-ficção publicado pela Editora Sextante, que documenta a vida dupla de um membro da KGB que foi recrutado pelo MI6.
Oleg Gordievsky foi um agente duplo que interferiu diretamente na Guerra Fria, que infelizmente ganha palco novamente, com as manobras de guerra da Rússia na Ucrânia.
Gordievsky foi criado dentro da cultura da KGB. Seu pai, Anton, era um devotado membro do Partido Comunista e agente, o que possibilitou uma infância bem alimentada, privilegiada e segura em um bloco de apartamentos em Moscou. Muito tempo depois, Gordievsky percebeu que o conforto de sua família era ilusório – todos viviam com medo.
Mas, o garoto cresce – curioso, atlético, com facilidade em aprender línguas, o que impulsiona sua entrada no Instituto Estadual de Relações Internacionais de Moscou. Mesmo antes da formatura, o aluno brilhante e promissor é recrutado pela KGB.
Mudança de perspectiva
Entretanto, dois momentos históricos começam a plantar dúvidas sobre as ‘verdades’ soviéticas. A primeira, em 1961, quando ainda estava concluindo a universidade, foi enviado à Berlim Oriental para passar seis meses como tradutor na embaixada Russa, e viu de perto a construção do Muro de Berlim.
O outro momento foi em 1968, quando a União Soviética invade a antiga Tchecoslováquia: “Esse ataque brutal a pessoas inocentes me fez odiar [meu próprio país]”, ele escreveu mais tarde.
Cinco anos depois, o MI6 (o Serviço de Inteligência britânico) começa a sondar o espião Russo. Gordievsky integrava o corpo diplomático Russo na Dinamarca como fachada. Richard Bromhead (MI6) conheceu Gordievsky em uma exposição de arte em Copenhague, tendo conhecimento de que Gordievsky era um agente da KGB. Mesmo sem conhecer verdadeiramente o russo, Bromhead passou a sondar a lealdade de Gordievsky, até que, tomando drinques em um hotel elegante, coloca as cartas na mesa.
“Só mesmo uma barreira física, reforçada por guardas armados em suas torres de vigilância, poderia manter os alemães orientais em seu paraíso socialista e impedi-los de fugir para o ocidente.”
Foi assim que Gordievsky tornou-se o agente mais valioso da MI6, fornecendo informações úteis, mesmo correndo um risco absurdo, levando uma vida dupla que nem a esposa e as duas filhas conheciam.
No verão de 1982 Gordievsky mudou-se para Londres e iniciou reuniões regulares com o MI6. Por um período longo para uma operação de espionagem, ele levava informações para espiões britânicos e soviéticos – e Margaret Thatcher, que se referia a ele como “Sr. Collins”.
O Espião e o Traidor: quando a realidade parece roteiro de filme
Uma parte que seria cômica, se não fosse absurda, foi o “questionário de personalidade” da KGB, que expunha características que procurava em um potencial agente: narcisismo, vaidade, ganância e infidelidade conjugal. Logo depois, o governo soviético convidou um americano proeminente, Donald Trump, para visitar Moscou.
É quando entra em cena Aldrich Ames. Agente da CIA, bebia muito, resmungava com frequência, tinha uma vida amorosa conturbada e se encheu de dívidas. Por isso, não foi uma surpresa quando descobriram que ele entregou documentos desmascarando cerca de 25 espiões para a KGB, cuja lista provavelmente incluía o nome de Gordievsky – daí O Espião e o Traidor. Tudo por dinheiro…
Gordievsky é chamado à Moscou e, mesmo suspeitando de ser uma armadilha, opta por manter seu disfarce – e entra em uma fuga espetacular, buscando a fronteira finlandesa. Oficiais da inteligência britânica o ajudaram a escapar, sendo a única vez que os agentes conseguiram extrair um parceiro da URSS, enganando seus adversários russos.
“Desde a infância, Oleg viu que podia levar uma vida dupla, amar aqueles ao redor enquanto ocultava o verdadeiro eu, ser uma pessoa e parecer outra.”
A narrativa dramática de Macintyre de suas histórias vem não apenas de fontes ocidentais (incluindo o próprio Gordievsky, que agora tem 82 anos e vive no programa de proteção a testemunhas no Reino Unido), mas também da perspectiva russa.
Entretanto, o autor não teve acesso aos arquivos do MI6, que permanecem secretos. Ainda assim, apresenta um trabalho documental, tendo entrevistado os ex-policiais envolvidos no caso, que contam suas histórias pela primeira vez. O resultado é um thriller de não-ficção deslumbrante e um retrato íntimo de espionagem de alto risco.
Quando a história se reflete na atualidade
Vale mencionar o mergulho que o autor faz sobre o pensamento dentro da KGB relativos à Guerra Fria, importantes para entender a cultura profissional na qual Vladimir Putin foi criado, e que deixou raízes que hoje ainda se fazem sentir – o sentimento de saudosismo à extinta União Soviética.
Gordievsky permanece sob sentença de morte e, podemos supor, é cauteloso com maçanetas e frascos de perfume. Ele sabe que o povo de Putin tem uma longa memória quando se trata de traição.
“Existem espiões dos mais variados tipos. Alguns são motivados por ideologia, política ou patriotismo. Um número surpreendente age por ganância, pois as recompensas financeiras podem ser sedutoras.”
Por: Maisa Carvalho
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