Resenhas - Um avesso perfeito

Krishnamurti 02/08/2021

PARA QUEM AMA UM BOM ROMANCE DE ÉPOCA Texto orelhas – Romance Um avesso perfeito
Tanto no romance de época em que os personagens estão inseridos em cenários e costumes de tempos recuados, (mas com dinâmica própria na qual os acontecimentos não dependem exclusivamente de fatos comprovadamente ocorridos), quanto no dito romance histórico embasado em ocorrências históricas, muitas vezes como ponto de partida para revisitações de interpretações outras, é certo que textos dessa natureza, quanto mais aproximam em síntese essas duas vertentes, demonstram a habilidade do autor(a), em promover uma abertura no horizonte de sentidos que são os sons e as cores da possibilidade de mudanças do entendimento, pois carregam um amplo espectro de subjetividades e desejos. Disto decorre uma interpelação ao passado que urde uma narratividade cuja composição dá conta de intercruzamentos temporais que partem de uma configuração do que chamamos ‘ausências” na história ou construções desaparecidas pelo esquecimento. Isto é, os silêncios, os não ditos, os recalques e tanto do sentir humano. Verdadeiras janelas para a recuperação das formas de ver, sentir e expressar o real de tempos passados.

Um avesso perfeito da médica e escritora Lilia Figueiredo é romance de época que explora a trajetória de vida da protagonista Liége Ranwez Nedercliff, e abarca um período de tempo que se entende de 1835 a 1882, no cenário da corte do Império do Brasil no Rio de Janeiro. Acompanhamos sua trajetória desde os 13 anos, época em que chamou a si uma determinação de vida que lhe causaria a alcunha depreciativa de ‘mocinha excêntrica’. Onde já tinha se visto? Mulher, e ainda por cima médica? O imenso mosaico que a autora constrói nos faz, de partida, encarar a ambiência social em que o romance se desenrolará, ao centrar o foco narrativo no massacre de Porongos, penúltimo confronto da Revolução Farroupilha ocorrido em 14 de novembro de 1844, e que é exemplo histórico e real, de imposições totalitárias, diferenças regionais imensas, racismo de puro e simples extermínio no aniquilamento de um regimento de lanceiros negros, nada mais, nada menos, que escravos recrutados sob a promessa de libertação após a guerra.

Acompanhamos o desenrolar de seu casamento com o inglês John Nedercliff, sofremos com o preconceito contra as mulheres tão arraigado, ficamos completamente perplexos ante os efeitos devastadores do botulismo (no passado conhecido como envenenamento por salsicha) e também a febre amarela que matou milhares de pessoas (exatamente como a Covid hoje), e finalmente, indignamo-nos profundamente com as tramoias monstruosas, urdidas por interesses outros de acusarem-na perante a lei de exercício ilegal da medicina.

A técnica de avesso perfeito era muito usada pelas senhoras de família no passado para bordar imagens ou letras em quaisquer tipos de tecidos sem que houvesse nós ou fiapos no avesso. Daí o caráter de personalização por meio de nomes ou figuras que agradavam esteticamente e ornavam o avesso quase tão perfeito quanto o lado direito da peça. Liége aos 13 anos teve a oportunidade de ouvir seus batimentos cardíacos por meio de um estetoscópio e fez a si mesma a promessa de, e a despeito de todos e tantos empecilhos, notadamente o do exclusivismo masculino na profissão, se tornar médica. Uma tessitura penosa, demorada em um tecido social tão adverso. Bordou-se a si mesma ao longo da vida. Exemplo acabado de que a vida sempre é, e sempre será possível.
Krishnamurti Góes dos Anjos
Escritor e crítico literário

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