Matheus Monteiro 12/09/2021
Fantástico
O patriarca da família Guimarães morreu. Dono de terras importantes na histórica vila de Mazagão Velho, um distrito do estado do Amapá, seu fim faz com que os filhos e outros familiares retornem para prestar os ritos fúnebres e decidirem o que fazer com a propriedade no local. Mas a estada no local não parece aleatória, e além de memórias desconfortáveis ressurgirem enquanto as festividades de São Tiago acontecem, a percepção de que algo os estava esperando cresce a cada momento.
Semente de Sangue é o romance de estreia de Gabriel Yared, escritor amapaense com trabalhos focados principalmente no horror. E que romance de estreia! Utilizando de uma escrita onde cada palavra parece cirurgicamente escolhida para construir a ambientação e detalhamento psicológico de seus personagens, Gabriel cria aqui um esplêndido, sombrio e rico livro de horror gótico, principalmente ao imprimir uma voz própria aos elementos tipicamente comuns a esse gênero literário. Sim, temos aqui uma mansão com passado sombrio, segredos de família, clima opressivo que visa o medo e fantasmas rancorosos presos em uma existência que não apenas os próprio atormenta, como aos vivos, mas o que sempre corre o risco de cair como um estrangeirismo ao imaginar uma história se passando em alguma região do Brasil, Gabriel transmuta os signos e elementos para a ambientação de Mazagão Velho de uma forma deslumbrante, aproveitando para usar do próprio gênero como potencializador de discussão social, ao dialogar com um tema perturbador na história, não apenas do distrito amapaense, como do próprio país que é o período colonial e o racismo contra pessoas negras.
Nesse ponto, é de se refletir, ainda que talvez muito cedo, como alguns escritores de horror latinos estão ressignificando o gótico (um gênero de origem europeia) para seus próprios territórios e discussões históricas. Silvia Moreno-Garcia fez isso em Gótico Mexicano, ao utilizar do gênero para narrar sobre as ideias eugenistas dos brancos europeus no México, principalmente com os povos indígenas. Em Semente de Sangue, o trauma colonial, a relação de violência e desumanização entre colonos europeus e pessoas do continente africano (aqui, mais especificamente o Marrocos) que foram escravizadas, é o cerne do conflito do sobrenatural com o humano, a origem do horror, o ímpeto da vingança. Utilizando da figura do fantasma, esse ser que está além de um fim de uma existência, uma memória fixa que manipula e interfere (segundo as narrativas e algumas religiões), que cobra, Gabriel conduz uma história sobre como os frutos desse conflito geram outros conflitos, outras violências, e algumas vezes se repete mesmo após décadas do seu fim (o arco inteiro de Madeleine é uma lembrança contínua dessas relações, onde os flashbacks também servem como sinalização de que a violência não se foi por completo, ou talvez só encontrou um novo rosto).
Mas se a escritora mexicana usa do gótico de forma literal, brincando com a ideia dos elementos europeus dentro de um território americano colonizado, Gabriel faz sua transmutação de signos, e não apenas traduz para a realidade colonial per si, como não deixa de reverenciar o território a qual história se passa. Entrelaçando ficção e história, e desenhando as festividades tradicionais de São Tiago (que também traz seus próprios conflitos entre cristãos e mouros) a qual os personagens participam de uma forma ou de outra, e celebrando a forma e força do território amapaense, com seus igarapés, igapós e florestas próximas, Gabriel cria sua própria versão de uma história gótica, enriquecendo culturalmente e sensorialmente, criando cenas memoráveis envolvendo o próprio ambiente, tanto numa cena delirante envolvendo garotos perseguindo pássaros boiando no rio, como no sombrio clímax.
Semente de Sangue é um livro sombrio, uma história de fantasmas revigorante, e um comentário sagaz sobre os horrores que ainda permanecem e que não devem ser esquecidos. Com personagens bem delineados e devidamente aproveitados, um tom de tragédia, e um pouco de esperança, é uma estreia deslumbrante.