Pandora 21/09/2021Eu nunca havia lido nada da Djamila. Conhecia superficialmente sua militância negra e feminista e a luta em prol dos direitos humanos. Decidi começar por este livro mais pessoal. Aqui, ela escreve cartas para a querida vó Antônia, mãe de sua mãe, já falecida, que foi extremamente presente em sua vida.
Djamila, como eu, foi criada em Santos e embora ela tenha nascido entre a minha geração e a da minha filha - 14 anos pra cá, 10 pra lá - a forma como ela foi criada é muito mais próxima daquela em que eu fui criada do que como criei minha filha. Fruto de um casamento onde o pai saía para trabalhar e a mãe ficava em casa cuidando da casa e dos filhos, Djamila passou pelas mesmas impressões que eu tinha dos pais: “Como eu o idolatrava (…), por muitos anos eu achei que ele era bom e ela, má, aquela que batia e brigava (meu pai jamais me deu uma surra)” - pág. 54. Eu ri quando ela escreveu que evoca a mãe quando a filha lhe responde atravessado: “se eu falasse assim com a sua vó, eu não teria dentes…” - pág. 41. Já disse algo parecido à minha filha.
Encontrei algumas semelhanças na criação (minha mãe também me levava pra benzer e minha própria avó de criação, negra, também sabia rezas e benzimentos), a cumplicidade que a mãe exigia quando queria esconder algo do pai, a casa que girava em torno das vontades do patriarca, o ideal da mãe que as filhas se casassem virgens. Mas é claro que a vida da menina preta conheceu coisas que nunca me afligiram: a principal, o racismo, tão absurdo e cruel.
“Lá em casa, vó, crescemos entendendo que errar era mais um privilégio de brancos.” - pág. 23
“Preparar para a vida, quando se trata de uma criança negra, é ser brutalizada o bastante para aprender a lidar com a brutalidade do mundo.” - pág. 24
“Nas poucas vezes que fui a bailes de Carnaval na adolescência ou quando jovem adulta, os rapazes tentavam me beijar à força, tudo era muito naturalizado. E foram várias as vezes em que eu vi, ao rejeitá-los: “Está se achando, hein, neguinha? Você não é tudo isso”. E para eles, eu deveria me sentir honrada em ser beijada à força ou agradecer por eles passarem a mão em mim sem meu consentimento.” - pág. 100
É uma leitura muito fluida, muito gostosa, de linguagem simples, em que não só conhecemos um pouco da trajetória de Djamila, mas também acompanhamos seu encontro consigo mesma, o crescimento espiritual e o reconhecimento profissional.
E a perpetuação da herança recebida das mulheres de sua família; aquela que não é feita de dinheiro, mas de vivência e sabedoria.