gabriel 24/02/2022
Excelente livro sobre infância e família
Achei interessante este livro, ele é um conjunto de contos abordando questões familiares em meio a um cenário de pobreza e privação, com seus personagens sofrendo toda a sorte de opressões (alguns deles acumulando várias "identidades", portanto várias opressões cumulativas). Isso é especialmente claro no último conto, em que os dois protagonistas acumulam vários "P's" (como preto, pobre, etc), até finalizarmos com um otimista "P" de professora. Mas que, mantendo a tônica geral do livro, termina também amargo, com um travo na garganta...
E eu acho que é este o gosto que o livro deixa ao final. É um livro triste, amargo, reflexivo, e por vezes bastante denso (denso até demais). Mas ele também consegue incluir beleza e esperança, com muita poesia, principalmente nas pequenas coisas do cotidiano. Achei que a autora é muito bem sucedida em observar estes pequenos fatos, e são cenários fascinantes, quase sempre domésticos, com muitas cores, sons, pequenos momentos de beleza... para mim, são os momentos em que o livro mais cresceu.
Isto fica bem claro no conto "Compota dos amores", que para mim é o melhor do livro, diria até de longe. Toda essa habilidade da autora, que é o seu ponto forte, é posta à prova aqui, e ela se sai muito bem. O conto é o passeio fascinante de uma criança por um sítio de parentes, e toda a poesia deste pequeno fato banal (que adquire um ar "grandioso" para a criança) é magistralmente expresso.
Há um equilíbrio sutil entre este delicado momento e uma perigosa pieguice, e a autora, feito o "Neo" do Matrix, desvia destas balas com impressionante competência. Conto profundo, cheio de momentos ambíguos e alusivos, com ótimos jogos de imagens e de palavras. Ressalto, por exemplo, uma visita a uma senhora de idade, e como não há assunto nesta visita (fato comum); denotando, possivelmente, ou um início de demência, ou então uma mágoa antiga (dentre outras inúmeras leituras). Muito bom! São vários momentos deste tipo, aqui neste conto.
Os outros contos variam em qualidade. Achei que o primeiro e o último conto são muito arrastados, acredito que se beneficiariam de uma narrativa mais curta. Por conta das preocupações políticas da autora, ficaram muito esquemáticos, e acho que simplificaram temas complexos. De toda maneira, possui importantes denúncias, não só abordando os temas das identidades/minorias (tema que é a "bola da vez"), mas também sempre ressaltando o caráter social e de classe. Neste livro, branco pobre também se ferra, ainda que um pouco menos do que o negro.
Senti, no geral, que os contos poderiam ser todos eles um pouco mais curtos, porque aí focariam mais nas suas qualidades e pontos fortes, fora que em alguns casos são um pouco repetitivos. São contos relativamente longos e a gente sente falta de mais contos para encher a seleção. Porém como são todos no mesmo tema, contém uma interessante unidade, e achei isso muito bem feito.
É interessante como a infância tem um caráter de "força" no livro, e à medida que os personagens envelhecem, vão ficando amargos e reflexivos. Vi esta característica em pelo menos dois contos. Não a toa, o conto mais belo (talvez por ser o mais otimista) é o que fica parado só na infância. O texto não dá tempo da personagem virar adulta e "quebrar" esta magia.
São várias relações e dinâmicas familiares retratadas. Há a relação do irmão mais velho com a menina (o irmão fazendo as vezes de pai); há tios e padrinhos/madrinhas, em relações lúdicas; há a moça com lembranças amargas da mãe (e que luta para aceitá-la, com belas cenas que "empatizam" com isso); etc etc.
O livro tem uma preocupação muito grande com a criação de cenas significativas e com os sons das palavras. Assim, uma moça em sua nova casa transita entre caixas de mudanças, que são como "campos minados"; o prato se mancha de vermelho, em meio às flores (representando a pureza e "breguice" da mãe, ouvinte de um Amado Batista); uma menina está de azul em meio ao verde dos colegas, criando um cenário "oceânico"; dentre outros muitos momentos.
"A inalação oscilava presença", belo jogo sonoro, com sons sibilantes, junto à imagem de panelas fervendo e um inalador de uma menina com bronquite. E a pobreza não é exatamente privação, mas ter que fazer o almoço muito cedo. O cheiro de alho pela manhã incomoda e perturba. E o banquete é um prato de salsicha com purê, a melhor refeição do dia.
Algumas notas sobre contos individuais. Todas elas apenas revelam minhas preferências, sem a pretensão de ser uma análise "séria" ou "objetiva".
"(Cha)cota social". Gostei deste conto, mas ele caiu um pouco pra mim do meio para o final. Ele começou muito bem, com ótimas imagens e cenas, mas depois se perde um pouco em meio a taxistas gente fina (meio irreal) e um excesso de cenas e situações. Nota 3/5.
"Madagascar". O livro aqui retoma os eixos, neste excelente conto. Mas ele seria como uma carne mal passada no meio, achei que exatamente neste momento o conto dá uma queda brusca. A autora, no entanto, é malandrinha, e fecha o conto de maneira surpreendente e bela. O título é engraçado e remete a uma infância pré-internet, em que crianças mais nerdolas reviravam enciclopédias (outros só batiam figurinhas mesmo e jogavam videogame). Nota: 4/5.
(Aliás, tema central no livro, estamos sempre numa época atemporal sem smartphones ou internet. Podemos localizar vagamente um anos 80, ou então um início dos 90).
"Dia das Mães". Conto belíssimo, muito puxado na reflexão, a autora exagera numa linguagem quase que formal (não chega a ser, mas há escolha vocabular muito erudita, violando certa delicadeza), termina de maneira poética e tensa, com sangue e flores. Sinceramente, 5/5, os momentos belos compensaram certo pedantismo.
"Compota dos Amores", para mim o ponto alto do livro, junto ao conto sobre o dia das mães, formou os dois melhores contos da seleção. O passeio da menina pelo sítio é muito bem retratado, com descobertas pessoais e momentos poéticos. O livro flerta com a pieguice, sem nunca cair nela. Nota: 5/5.
"Mais um", sinceramente não gostei muito deste conto, achei muito pesado e um pouco repetitivo, além de burocrático. No entanto tem alguns bons momentos, trabalha alguns temas importantes e explora alguns aspectos da relação entre irmãos. Achei que há um excesso de temas e ficou muito embolado. Nota: 3/5.
Livro de estreia de Ana Sá, os contos são um passeio pelas diversas relações familiares, em meio a um cenário de pobreza e desigualdade. É muito interessante como este cenário de privação molda as relações familiares e vice-versa. A pobreza é retratada de maneira factível e com um olhar poético, sem no entanto glorificá-la. A escrita é fluida, bela e inteligente. Livro mais do que recomendado!