Andreia Santana 17/03/2024
A verdade contida em um ato falho
Aurora está em uma casa de repouso depois de ser encontrada vagando, desmemoriada, no acostamento de uma estrada, segurando a coleira vazia de um cachorro e chamando por ‘Camila’. No abrigo de idosos, a antiga professora de língua portuguesa de setenta e tantos anos reconta as muitas versões de sua vida para a assistente social Rosa, que está empenhada em ajudá-la a recuperar suas memórias e retomar a vida fora do asilo.
Narrado em primeira pessoa, É sempre a hora da nossa morte amém, de Mariana Salomão Carrara, por quem me apaixonei desde que li Se deus me chamar não vou, mistura humor, tragédia e pitadas generosas de neurose e auto depreciação, para nos mostrar o quanto somos versões inacabadas e eternamente em manutenção. E o quão indulgentes também podemos ser com as nossas imperfeições, embora mortificados de culpa até o túmulo.
O título do livro deriva de um ato falho da protagonista, cometido na infância, quando ela, ao rezar a oração do Pai Nosso, repetia ‘é sempre a hora da nossa morte’, em vez de ‘agora e na hora de nossa morte’.
Aurora desaprendeu a fé ainda em tenra idade. Idosa, sua descrença é temperada com a visão ácida e irônica sobre as muitas antíteses humanas.
A professora aposentada não consegue lembrar se tem ou não tem uma filha chamada Camila, que é homônima de sua melhor amiga da vida inteira, desde os tempos do ensino fundamental. A memória dela, fragmentada, se remodela dia após dia, a cada nova história que conta para Rosa. Não sabe nem se seu nome é esse mesmo, pois renova-se inteira a cada amanhecer, como o dia que nasce sempre outro.
Junto com Aurora, nós leitores ficamos perdidos em um rosário de recordações que podem bem ser apenas imaginação. E é aí nesse novelo emaranhado que está a graça e a delicadeza dessa história. Nunca é dito se Aurora, por exemplo, sofre de uma doença demencial. O neurologista do asilo define o caso dela como uma ‘amnésia poética’.
No decorrer da narrativa, conhecemos diversas versões não só de Aurora, mas da Camila filha, inclusive com suas várias possibilidades de mortes trágicas por conta dos temores maternos; e da Camila amiga, desde o primeiro encontro na escola até a vida em comum das duas, quando supostamente compartilharam a mesma casa após enviuvarem.
A incerteza de qual dessas possibilidades da vida de Aurora é a verdadeira torna a leitura um enigma a ser decifrado e, comparando com a existência de cada pessoa no mundo, não seriam todas as nossas interações uns com os outros e com o ambiente uma possibilidade dentro de milhares de outras? Cada escolha feita não tem, ao mesmo tempo, o poder de nos revelar quem de fato somos e de nos afastar de outros vir a ser nunca completados?
A ideia aqui não é julgar qual versão nossa é a melhor, mas brincar com a ideia de que cada vez que fazemos uma escolha, ou escolhem por nós, nascemos para uma coisa e, por tabela, morremos para uma outra.
Alguns fatos da vida de Aurora parecem constantes, como Rosa percebe ao começar a registrar as histórias da professora em um caderninho. A mãe que a negligenciava e por isso ela se sente compelida a ser uma mãe super protetora; o marido Antônio que não queria ser pai e abandona a mulher e a filha, só reencontrando-as a cada possível morte de Camila; o ofício de Antônio, técnico do Instituto Médico Legal nos tempos da ditadura, quando assassinatos eram escamoteados em suicídios e mortes naturais inverossímeis; e a amiga Camila e sua mãe rigorosa e carola tentando atos de rebeldia que só confirmavam sua natureza dócil para a obediência.
Não tem graça dizer qual é a verdadeira história de Aurora, se ela tem ou não uma filha, se a amiga existe, se os cachorros Perdoai e Ofendido são reais ou só mais um engodo da memória. É preciso ler para descobrir se a vida dela é mais interessante ainda do que as mirabolantes ‘aventuras’ registradas por Rosa ou se ela é só mais uma pessoa cheia de potencialidades, um vir a ser que nunca tornou-se em existência.
De certa forma, Mariana Salomão Carrara com esse romance nos leva a refletir sobre a finitude da vida, o quanto não cabemos dentro de um tempo tão limitado. A morte requer um exorcismo e as histórias, nossa capacidade de narrar, é essa quebra de maldição. Se a morte é o que há de pior que pode nos acontecer – há controvérsias, mas para o senso comum é só para a morte que não há remédio e por isso tantos a temem -, então, ao imaginar obsessivamente todas as formas de sua possível filha morrer, de sua adorada amiga e do marido Antônio saírem de sua vida, Aurora ameniza o medo do fim, que no caso dela, e no nosso também, atende pelo nome de solidão…
Ficha Técnica:
É sempre a hora da nossa morte amém
Autora: Mariana Salomão Carrara
Editora: Nós, 2021
240 páginas
R$ 69,00 (livro físico, Amazon) ou para ler gratuitamente no @biblion.app
***************
*Livro lido para o desafio #50livrosate50anos, uma brincadeira que criei para comemorar meu aniversário. Em abril de 2024 eu faço 50 anos. A ideia é ler 50 livros até lá e, se possível, resenhar ou fazer algum breve comentário aqui no Skoob e no Instagram, sobre cada um deles. É sempre a hora de nossa morte amém é o livro 24 do desafio. No total, até agora, 31 já foram lidos, tem outros 19 na fila de leitura e sete aguardando postagem.
site: https://mardehistorias.wordpress.com/