@literatoando 08/07/2022A Outra Garota Negra e suas polêmicasA Outra Garota Negra é um livro controverso de nascimento. Ele é aberto a interpretações e cheio de camadas, de modo que dá para entender os motivos que o levou a ser criticado por tanta gente. Iniciamos a história com um mistério, seguimos com um suspense e finalizamos numa distopia tão assustadora que me fez pensar se a realidade não consegue ser ainda pior.
Nesta narrativa conhecemos, inicialmente, Nella. Ela trabalha em uma editora de livros rodeada por pessoas brancas e na qual é a única mulher negra. A autora faz um ótimo trabalho de ambientação, levantando as situações racistas que a personagem é atravessada cotidianamente, e o faz com uma veracidade que somente alguém que já passou por algo parecido seria capaz de descrever. Particularmente, fiquei totalmente envolvida no enredo com esta parte inicial, porque fui capaz de me identificar com muito do que é posto como vivências da Nella.
São ?micro? agressões do cotidiano da personagem situações como: crescimento profissional limitado dentro do ambiente de trabalho; silenciamento e desconsideração das opiniões da personagem por parte de colegas de trabalho; a sensação de ser intimidada a todo tempo, tendo que escolher bem as palavras, o que pode ou não falar; autocobrança pela perfeição por saber que as consequências para seus erros serão maiores com relação a outras colegas; a obrigatoriedade de ouvir os discursos racistas e ser vista como uma ?exceção?; ter suas falas manipuladas com frequência. E estes são só alguns exemplos.
??Você precisa ser duas vezes melhor, está lembrada??, ela se repreendera. Não conseguia se lembrar quem lhe dissera essa frase primeiro, ou se alguma vez havia sido dita diretamente para ela, mas isso não a impedia de sempre repetir para si mesma que sua pele escura significava que ela precisava ser duas vezes melhor do que uma garota de pele branca, essa corrida gigante a cansaria.?
O que modifica por completo a trajetória da personagem principal é a chegada de uma outra garota negra na empresa, Hazel, e com sua admissão muitas coisas estranhas começam a acontecer. Esse acontecimento desestrutura Nella em muitos níveis, fazendo com que ela comece a repensar suas vivências. Confesso que o desenrolar da história me fez temer os rumos que ela iria tomar, mas a genialidade da metáfora e da provocação da autora vai muito além de um discurso raso ou de uma leitura feita única e exclusivamente para causar estranhamento e divertir. Tal qual o filme ?Corra?, que me veio à memória diversas vezes durante a leitura, Zakiya não entrega tudo de mãos beijadas para a gente traduzir e eu achei fantástico, porque é incômodo e TEM QUE SER.
A história da personagem principal se complica ainda mais quando ela questiona o trabalho de um autor branco na construção de uma personagem negra dentro do seu livro e o modo como ela está sendo retratada. É nesse momento que as pessoas da empresa começam a enxergar ela como ?negra demais?. Enquanto ela aquiesceu e ficou quieta, havia um nível de tolerância dela naquele espaço, mas se posicionar? ?Não, isso já é demais!? Quantas pessoas negras não passam por isso diariamente? Somos questionadas a todo tempo e sempre a branquitude impõe um limite, como se fosse intolerável sermos seres humanos capazes de emitir uma opinião, opinião essa que nem é levada em consideração na maioria das vezes.
?- Me diga, por favor, o que diabos vocês querem de nós? ?Desculpe se minha pele é tão preta meu cabelo tão grosso?? ?Desculpe se vocês tem matado meu povo durante gerações ge-ra-ções, gente? e quem vocês não mataram vocês deixaram debilitado financeiramente, sem qualquer bem para deixar para os filhos?? ?Desculpe se vocês trouxeram meus antepassados naqueles navios e me forçaram a viver com a sua gente???
Devo dizer que, de certa maneira, isso aconteceu com a própria autora de ?A Outra Garota Negra? e a forma como o livro foi recebido por muitos leitores. Inicialmente, ele foi publicado através de um clube do livro por assinatura e, ao que me recordo na época, houveram muitas críticas relacionadas à motivação de um livro como este, ?de nicho?, estar em um clube como aquele (nem preciso dizer quem são a maioria dos assinantes, né?). A real é que esse livro incomoda e tem um motivo. Ele escancara a verdade, o autêntico desejo dos brancos de nos manterem dóceis, concordantes e compactuando com os vícios que lhe são típicos: pilhar e dizimar culturas, descaracterizar movimentos de combate às desigualdades e fingir tomar atitudes, como rodas de diversidade e afins, que não vão modificar a realidade de fato. Isso é válido não só para brancos que estão em posição de poder, que mantém um distanciamento, mas também do convívio da personagem como seu namorado branco, por exemplo.
Um ponto interessante que a autora nos chama a atenção é sobre os subterfúgios que cedemos para pessoas brancas dentro de ambientes profissionais, que ela chama de ?alternância de código linguístico?, mas quanto disso estamos dispostos a ceder? Tem uma matéria interessante do site Mundo Negro que fala justamente sobre quão psicologicamente adoecedor pode ser ter que se metamorfosear para atender aos desejos estéticos e de comportamento da branquitude. Claro que é positivo sabermos nos comunicar de maneira diversa e adequar a nossa linguagem ao público alvo, mas isso não deve passar por atingir os nossos princípios, ?ser menos negro/a? para caber nesse lugar. Infelizmente, na realidade brasileira, muitos de nós não temos escolha por uma questão de sobrevivência e prioridades, até mesmo vulnerabilidade financeira, mas quando se tem como, por que a escolha seria se render ao desejo branco de domesticação do nosso saber, pensar e se portar?
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