Flávia Menezes 22/04/2023
??O FILHO DE UMA MULHER QUE NASCEU DE OUTRA MULHER.
Andréa Fátima dos Santos, mais conhecida por seu pseudônimo Andréa del Fuego (uma referência à dançarina, naturista, atriz, escritora e feminista brasileira Luz del Fuego), é uma romancista e escritora brasileira formada em Filosofia pela Universidade de São Paulo, que ainda na adolescência se formou em técnica em publicidade, onde começou a escrever contos eróticos que lhe renderam um convite de um amigo jornalista para criar uma seção de perguntas e respostas sobre sexo como se fosse um personagem. Andréa também atuou como colunista do programa ?Entrelinhas? transmitido pela TV Cultura, produzindo matérias sobre autores, tais como Murilo Rubião, Roberto Bolaño, Ana Akhmatova, Julio Cortázar e Enrique Vila-Matas.
?A Pediatra? é o último romance escrito pela autora, e publicado em 4 de outubro de 2021, e muito embora seja relativamente um livro curto com apenas 160 páginas, seu conteúdo possui uma diversidade de temas sensíveis e profundos, tais como a indiferença emocional, a ausência de vínculos afetivos, maternidade e maternagem, parto tradicional x parto humanizado e as polêmicas (e dolorosas!) relações extraconjugais.
Essa é uma leitura que iniciei depois de ter minha curiosidade aguçada pela amiga Ana Sá, mas confesso que fiquei bastante receosa em iniciá-la, uma vez que não sou uma grande fã da literatura nacional, onde essa saída da minha zona de conforto é sempre repleta de um grande desconforto. Mas para a minha surpresa, ao final, fiquei fortemente impactada por essa história.
A escrita de Andréa del Fuego acontece em um gênero textual diário, onde vamos conhecendo esse universo através do olhar da sua protagonista, que nos conta sua história através de um relato íntimo do seu cotidiano, em uma sequência que nos revela tanto o que acontece ao seu redor (percepção), quanto do que vai se passando em seu interior (desejos, ações, emoções).
Preciso dizer que a forma como a autora desenvolve essa personagem complexa e de comportamentos polêmicos é impressionante, ao ponto de ficar tão plenamente conectada a essa anti-heroína, que seu final me deixou de coração partido. O que foi surpreendente, porque de tudo o que havia lido sobre essa história, me emocionar era a última coisa que eu esperava. Mas aí é que está a maestria dessa escrita da Andréa que, para mim, atingiu o nível da perfeição!
A protagonista desta história é Cecília Tomé Vilela, uma médica pediatra que apresenta um quadro de acentuada indiferença afetiva, o que faz com que sua narrativa seja bastante chocante, uma vez que, sendo médica de crianças, se espere que ela tenha mais conexão com seus pequenos pacientes, que seria, inclusive, despertada pelo seu instinto maternal. Porém, o que Cecília menos tem, é instinto materno!
Já quero iniciar essa resenha me debruçando sobre a questão da atuação dos médicos e profissionais da saúde, e desse conceito tão banalizado na atualidade que é o da empatia. Uma coisa que aprendi durante o estágio em Psicologia Hospitalar no meu último ano de faculdade, é que se esses profissionais, médicos ou da enfermagem, fossem tão sensíveis aos seus pacientes como esperamos que eles sejam, eu lhe pergunto: como eles poderiam estar aptos para realizar o seu trabalho?
Existe um conceito na psicologia que se chama ?distância psicológica? (também conhecida como ?distância ótima?), onde precisamos ter uma distância emocional suficiente para poder ver as coisas em uma perspectiva que nos permita ter clareza quanto a conduta que precisa ser tomada. Aliás, esse distanciamento psicológico (e consequentemente emocional) do profissional da área da saúde é de extrema importância para que ele possa manter seu psicológico equilibrado, e possa assim realizar seu trabalho de forma adequada.
Sendo assim, muitas vezes não vi apenas a ausência de conexão emocional da Cecília com seus pacientes, mas também desse tipo de comportamento que é próprio da área médica. E a autora foi tão perfeita em trazer essa questão, que em um dado momento, ela demonstra como o vínculo afetivo pode desestabilizar até o mais controlado dos médicos.
Além disso, o que também não me deixou tão desconfortável com a protagonista é que, muito embora ela tenha bem acentuada essa questão da indiferença emocional, em momento algum ela deixa de realizar o seu trabalho seguindo os princípios da ética profissional. Como ela mesma diz, muito embora ela possa fazer só o ?arroz com feijão?, ainda assim, ela jamais atua de forma que possa prejudicar seus pacientes. Sendo assim, muito do que vi na conduta e fala da personagem, confesso que também já ouvi de muitos médicos com os quais trabalhei em uma Cooperativa de Trabalho Médico.
Como digo acima, nem tudo é falta de empatia. Mas é certo que um médico possui um olhar mais clínico sobre as doenças, e essa fala carregada de jargões e termos técnicos, é parte inerente desse universo, e não um mero descaso.
De fato, a autora me pareceu bastante cuidadosa nesse quesito, tentando trazer bastante da realidade da profissão, sem grandes exageros, inclusive fazendo um paralelo quanto à polêmica que vemos hoje em dia sobre parto tradicional e os partos humanizados, mostrando que nem tudo deve ser levado tão a ferro e fogo assim, pois cada caso é um caso, e o mais importante é a segurança e o bem-estar da mãe e do bebê.
Construir uma narrativa coerente com a realidade, parece ser algo que a Andréa leva bastante a sério, e a forma como ela traz o caso da indiferença emocional da Cecília foi devidamente construído.
Dificuldades em sentir e expressar emoções, assim como em estabelecer vínculos afetivos significativos nas nossas relações interpessoais, são provenientes de quebras de vínculos afetivos com a mãe logo no início de vida, que pode acontecer por questões de dificuldades na maternidade (até mesmo por uma depressão pós-parto, ou o pouco falado ?baby blues?), ou por necessidades da mãe em se ausentar (por conta de trabalho, por exemplo). E no caso da Cecília, essa não foi uma exceção à regra, e seu vínculo pobre na relação mãe-filha, resultou na sua dificuldade em estabelecer sólidos vínculos afetivos e até no desejo de ser mãe.
Aliás, algo que achei muito rico nessa leitura, foi a autora trazer a questão da diferença entre a maternidade e a maternagem. Nem toda mãe que gera um filho é capaz de ser maternal, porque uma coisa é ser mãe (maternidade) e a outra é a forma como essa mãe se comporta com o filho (maternagem) com seus cuidados e demonstração de afeto.
Foi exatamente nesse ponto que a autora me levou às lágrimas, e já me deixou certa de que não havia nenhuma outra possibilidade a não ser lhe dar 5 estrelas por uma história tão primorosa e bem construída.
Se iniciamos a leitura sentindo a frieza da indiferença da Cecília, ao longo do que vai acontecendo, vamos nos simpatizando mais com seu jeito de ser, respeitando suas dificuldades, acompanhando com muita comoção o momento exato em que algo dentro dela se agita, e sua primeira expressão de afetividade acontece.
Além de belíssima, essa é uma cena muito tocante, e acompanhada por um drama intenso que irá nos envolver até o final.
A verdade é que a ausência de uma relação parental adequada e saudável, nos deixa sem um referencial de como devemos nos portar como pais e mães, e para que esse ?gap? seja suprido, é preciso trabalhar essas questões em um profundo processo psicoterapêutico, para que possamos compreender como essas relações se dão.
Claro que também podemos fazê-los através de leituras, ou mesmo de filmes, seriados e documentários sobre o tema. Mas o mais importante é entender que precisamos de bons modelos parentais, quando os nossos (seja pelo motivo que for) falharam. Algo que faltou na vida da protagonista, resultando em comportamentos altamente inadequados e até nocivos, culminando em um final de nos deixar completamente sem palavras.
Mas, neste momento, eu já estava tão conectada aos problemas vivenciados pela protagonista, que tenho que confessar que não me senti chocada. O que eu realmente senti foi compaixão, por uma vida tão repleta de rejeição, abandono, indiferença, deslealdade, que não havia como esperar nada diferente do que aconteceu, especialmente depois de saber tudo o que ela vivenciou no lar desajustado no qual ela cresceu.
?A Pediatra? não é só uma história chocante sobre uma mulher, médica pediatra, que não gostava de crianças. É uma história sobre a ausência do amor e do olhar materno, que resulta na desnutrição das emoções dos filhos, que carentes e sedentos de amor não sabem nem como expressá-lo, nem mesmo como pedir. E assim, vão atropelando suas relações, construindo muros para que outros não entrem, agindo de forma inadequada, porque para eles é sempre melhor ferir do que ser ferido.
Digo isso porque existem muitas Cecílias por aí, nesse nosso mundo ocidental onde vivemos em que a necessidade de uma vida financeira satisfatória traz a falsa ideia de que isso irá gerar felicidade. Mas ao final, vemos por aí muitas pessoas que assim como essa protagonista estão sendo consumidas por esse vazio existencial, por não saber o que as preenche.
E por esse motivo eu acho até muito superficial olhar para a protagonista apenas como uma vilã sem coração. Porque penso que ela nos faz refletir sobre uma vida vivida no piloto automático, e quantas pessoas na atualidade se sentem assim. Sobre esse vazio interior que não se sabe como preencher? já ouvi muita gente dizer isso. Ele é real, e buscar ajuda para saber o que tanto lhe falta é imprescindível. Senão acabaremos como a Cecília, tomando a via errada e colidindo com a insanidade.
Referente ao final, quero destacar aqui a magnitude dessa autora que com uma única palavra (uma única palavra apenas!) foi capaz de abrir inúmeras possibilidades do que aconteceu depois do último ponto final. Ou seja, como se diz na atualidade, ela literalmente construiu um triplex na cabeça do leitor. Isso foi simplesmente genial!
Ah! Antes de terminar, uma última curiosidade que eu li sobre a Andréa del Fuego, é que assim como o grande Mestre do Terror, Stephen King, é o seu marido o primeiro a ler as suas histórias. Mais um escritor que tem no seu parceiro de vida o seu melhor editor e seu leitor mais fiel! ?