edu basílio 06/09/2022corações inábeis em uma contemporaneidade pobre de afetos
depois de cinco anos em um relacionamento estável, Ela e Ele se separam.
com idades próximas aos 40, eles se veem de novo solteiros, em posse de uma liberdade cujo uso requer habilidades psicológicas e sociais totalmente estranhas a eles, em uma atualidade que parece prescindir dos afetos verdadeiros, da confiança e da intimidade... a partir da ruptura, acompanhamos nos meses subsequentes, em paralelo, as relações de ambos com amigos e ficantes eventuais (todos identificados apenas pelas iniciais), bem como suas próprias ruminações sobre a sensação de não pertencimento às dinâmicas de relacionamento da segunda década do século XXI.
foi para mim uma leitura marcante a ferro quente, que me exigiu muitas pausas para respirar fundo, deixar amortecer alguns socos -- todos por excesso de identificação. e paradoxalmente, essa identificação vívida me gera grande dificuldade de expressar tudo o que senti e o estado em que finalizo o livro. contudo, eu não queria deixar de comentar essa experiência, de modo que vi como uma solução mais ou menos aceitável registrar alguns trechos que falarão por si.
sobre o estranhamento geracional:
"como boa parte das pessoas de sua idade - e, claro, das mais jovens que ela -, E. não conhecia nada que não fosse precário e provisório, e se acostumara com isso, inclusive nas relações sentimentais, que não tinham prazos, não tinham certezas, só um peso imenso disfarçado de possibilidade para parecer tolerável."
sobre uma visão dos relacionamentos que ganhou contornos sombrios:
"como podia dar certo?, Ela pensava. nem mesmo a transformação do casal em um conjunto de elementos variáveis, como no caso de F., resolve os problemas inerentes à forma como as pessoas se amam e se possuem, sem alternativas. vários séculos de produção artística revelavam que a experiência amorosa podia ser transformada em matéria poética, mas a realidade dessa experiência continua sendo prosaica: um manual de instruções em que todas as indicações estão erradas, um jogo de palavras cruzadas criado por um estúpido e preenchido por um idiota."
e um bem cruel, sobre um dos aspectos mais brutais, para mim, da "geração tinder":
"no entanto, Ela não atendia mais suas chamadas, não disse para onde ia, não respondia seus e-mails: Ela havia criado entre os dois as maiores distâncias que podiam ser impostas nesse momento histórico em que a separação entre duas pessoas já não se dava mais no âmbito físico, e sim no da atenção, por assim dizer. nunca houve tantas possibilidades de negar a existência do outro sob o eufemismo de 'bloqueá-lo', pensava Ele. em nenhum outro período da história foi possível fazer desaparecer uma pessoa até esse grau sem ter que recorrer ao assassinato. quando uma pessoa descobria que o outro exercera contra ela seu direito a essa forma de supressão, ficava devastada de muitas maneiras, inclusive pela impossibilidade de protestar ou de pedir explicações."
esses poucos
quotes, creio eu, exemplificam o quão sagaz foi o autor em captar uma atualidade em que redes sociais, relacionamentos voláteis e individualismo excessivo se misturaram para produzir uma espécie de lama escorregadia (que de maneira incrivelmente acertada zygmunt bauman chamou de "modernidade líquida" há mais de 2 décadas). e ele a mostra a nós, leitores, pelos olhares d'Ele e d'Ela, com uma prosa límpida, impiedosa e precisa -- e sem ter dó de deixá-la nos respingar em cima.
e eu tinha como certo que o livro levaria 5 estrelas e se tornaria um favorito...
até que nas últimas 25-30 páginas minha opinião mudou: apesar de ter entendido o desfecho como um aceno do autor para alguma redenção e esperança em meio a tanta carnificina sentimental -- o que talvez devesse amaciar um pouco meu coração --, achei um pouco apressada e dissonante a reorientação de rumos que houve no finalizar da trama.
independente disso, concluo transcrevendo outro trecho, que com certeza reverberará em minha memória por muitos, muitos anos, sobre J., personagem cujo caminho cruza brevemente o d'Ela em um dado ponto do romance:
"ficou pensando no que J. estaria escondendo, talvez uma vulnerabilidade para a qual não fora educado e com a qual não sabia o que fazer (...). J. se identificava com um porco-espinho, um animal cuja intimidade em certas circunstâncias podia machucar os outros, e Ela ficou pensando por que ele fazia isso, quem teria incutido nele essa convicção sobre sua personalidade que Ela achava errada. (...). J. tinha sido acusado de algo que acabou aceitando; alguém lhe disse uma vez que ele machucava as pessoas ao seu redor e ele, por alguma razão, acreditou que a acusação o descrevia perfeitamente, que era o núcleo em torno do qual girava seu passado e o que faria com seu futuro."
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