Lit.em Pauta 04/05/2018
Literatura em Pauta: seu primeiro portal para críticas e notícias literárias!
"O passado é inquieto, agitado. Sofrendo constantes revisões históricas e políticas, ele não permanece inalterado e nem estático, revelando uma tendência preocupante de se estender para o futuro, repetindo-se. Ele é o ponto de partida, mas também o de chegada, negando o progresso. Em The Bonehunters, o sexto capítulo da série The Malazan Book of the Fallen, Steve Erikson trabalha com a ideia de que o passado é profecia: um inimigo implacável que é enfrentado tragicamente, concretizando-se com força de destino.
A história segue o 14º Regimento Militar do Império Malazano, liderado por Tavore Paran, que procura destruir o resto da rebelião de Shai’k eliminando seu líder Leoman, enquanto o persegue até a cidade de Y’ghatan, conhecida por ter sido palco de uma famosa derrota do Império. Enquanto isso, o historiador Herboric repete sua viagem com Felisin para cumprir uma missão que rejeita, Icarium e Mappo dão prosseguimento a sua cíclica jornada para recobrar as memórias do primeiro e Karsa procura cumprir seu papel de libertador, mas ainda preso pelas correntes de sua formação.
O grupo militar de Tavore é o centro narrativo do livro, protagonizando seus dois momentos climáticos mais importantes e possuindo o arco que melhor simboliza seu tema. A jornada do 14º Regimento é uma de gênese e desenvolvimento, que encontra na batalha em Y’ghatan a chave de sua criação e um símbolo da luta inútil contra o passado: o nome Bonehunters metaforiza justamente a sina do grupo de reviver tragédias históricas, como se estivesse perseguindo incansavelmente o passado.
O cerco a Y’ghatan, que dado seu escopo serviria muito bem como um clímax em outros livros, aqui é ponto de virada inicial. Primeiramente, Erikson prepara o confronto opondo os dois lados com relação a suas forças e fraquezas militares. O exército de Tavore detém uma vasta superioridade numérica e tecnológica, enquanto os soldados de Leoman têm mais experiência de batalha e a vantagem geográfica, além de lutarem por uma causa pela qual não somente estão preparados para morrer, como aguardam ansiosamente esse fim, considerando-o glorioso – não é a toa que são constantemente referidos como fanáticos pelo seu próprio comandante. O grupo de Tavore, por outro lado, parece perdido e sem rumo, continuando a luta meramente porque foi comandado. Para agravar a situação, Leoman claramente tem um plano, mas Tavore é fechada demais para demonstrar está tão desnorteada quanto seu exército ou se possui um contra-ataque pronto. Por outro lado, sua lealdade é inabalável, enquanto a de Leoman é questionada até mesmo pelo seu braço direito, Corabb.
Corabb, aliás, é o responsável por oferecer o ponto de vista da rebelião de Leoman. É um personagem fascinante que, em um momento surge filosofando sobre as estrelas revelando-se poético e otimista, e, em outro, ressentindo a amante de Leoman, mostrando-se mesquinho, carente e machista. Seu arco narrativo é direto e eficaz, envolvendo a desconstrução de sua visão unidimensional sobre seus inimigos: ao opor-se ao Império Malazano, Corabb inicialmente o vilaniza por completo, atribuindo-o defeitos exagerados, além de abraçar como verdade qualquer notícia ou rumor que confirme sua visão de mundo generalizante – e por isso limitada. Seu ódio é condição necessária para mascarar a natureza de suas próprias posições e atitudes violentas, constituindo um requisito mínimo para a formação do fanatismo que seu próprio líder condena, embora manipule. A trajetória de Corabb, todavia, é otimista, mostrando-o gradativamente desmantelando seu maniqueísmo ao ser atacado com indícios contrários e, assim, adquirindo uma visão multifacetada do mundo, que lhe permite enxergar a convicção como um veneno que corrompe a alma e bloqueia a empatia.
Poucos antagonistas em The Bonehunters não recebem algum traço de complexidade. Até mesmo uma criatura monstruosa demonstra ter seu próprio senso de justiça quando observamos o mundo pelo seu ponto de vista. O próprio Leoman passa longe de ser unidimensional. Ele pode ser gentil e sensato em um momento e justo em outro, enquanto sua amizade com Corabb o torna mais humano. Se em determinado momento é descrito como “pure evil“, isso não chega a vilanizá-lo, pois faz referência unicamente a sua tendência a cometer o ato considerado mais hediondo pela narrativa da série – e ponto central de Memories of Ice – que é a traição. Dessa forma, sua posição durante o confronto em Y’ghatan é central para a formação de sua personalidade.
A batalha em si começa repetindo a estratégica de balancear as forças envolvidas, imediatamente desconstruindo um dos trunfos do exército malazano. Ao seguir os engenheiros que manejam explosivos e que vão ser os responsáveis por derrubar a muralha da cidade, percebe-se que eles se dividem em dois grupos: aqueles que não sabem muito bem o que estão fazendo e aqueles que de fato sabem, mas são insanos e suicidas. Assim, quando a batalha começa, o que se vê em Y’ghatan é um puro caos de sangue, tripas e muito fogo.
Erikson, então, encurta os pontos de vista, pulando de um para o outro rapidamente, causando uma desorientação que reflete o caos da situação. No mesmo sentido, ele alonga a duração do próprio capítulo – talvez o maior da série até então – para sufocar o leitor com o mesmo desespero dos personagens, sem oferecer um momento para respirar. Na descrição das fatalidades, a narrativa ressalta o caráter humano envolvido, independentemente do lado do conflito: um soldado malazano morre pensando no que falhou com a mãe, sofrendo uma espécie de regressão até um estado infantil, e um fanático de Leoman, quando esfaqueado, profere o nome de uma mulher em angústia, o que ainda enche sua algoz de tristeza.
Contudo – e esse é um preço pela batalha se dar no início do romance – vários personagens pequenos que são abatidos não tiveram o desenvolvimento adequado até então e se confundem uns com os outros em personalidade. Entretanto, para compensar, a última parte do capítulo – focada em uma lenta e excruciante fuga – permite que vários personagens importantes tenham momentos mais íntimos de desenvolvimento – com destaque para a breve resposta “A welcome gift” de certo personagem, que completa seu arco narrativo nesse momento –, além de discutir temas caros à série, presenteando o leitor com passagens sobre comapaixão (“Compassion existed when and only when one could step outside oneself, to suddenly see the bars inside the cage”), e apresentar excelentes metáforas como a do parto que ocorre no final, marcando o nascimento não de uma pessoa, mas de um grupo. Isso tudo apenas no primeiro ponto de virada do livro."
Participe da discussão, conferindo a crítica completa em:
site: http://literaturaempauta.com.br/Livro-detail/bonehunters-critica/