Lisa 26/07/2023
É tão difícil ser mãe, quanto ser filha.
Em entrevista ao The Guardian, Avni Doshi revelou que ?a maternidade é uma palavra tão grande, tão expansiva ? quase não significa nada?. Em ?Açúcar Queimado? sintetiza o que quis dizer. Seu livro começa árido, desarma o leitor e o joga em uma posição de desconfiado receio, afinal sua protagonista sem rodeios nos atira a face que ?estaria mentindo se dissesse que o sofrimento da minha mãe nunca me deu prazer?, mas quem é essa que sequer conhecemos e já atira a mãe a fogueira? É preciso saber mais, é mesmo essa mãe um monstro indigno de pena a ponto de que ?a simpatia que ela desperta nos outros faz nascer algo acre? nessa personagem? Em seu primeiro parágrafo Doshi consegue nos prender instantaneamente e refletir em uma miscelânea de sentimentos confusos.
Miscelânea essa que se aprofundará cada vez mais à medida que a história se revela. Doshi toca em um tema sagrado sem medo de ser polêmica, dando voz e permissão a mulheres de serem polêmicas, imorais, irresponsáveis e, acima de tudo, complexas. Quebrando a narrativa da ?mulher boazinha? e da mãe ideal. Tanto Tara como Antara são faces de uma mesma moeda, a segunda forjada pela primeira, mas ambas forjadas pelo patriarcado indiano.
Tara ou Ma, como é chamada ao longo de todo o livro, revelando aqui a comum perda de identidade da mulher ao tornar-se mãe, é a primeira instância uma mulher rebelde, maliciosa, cruel e irresponsável. Oferecendo migalhas de afeto à medida que abandona sua filha em prol de um líder de uma seita religiosa, espaço para o qual leva essa criança e a força a chamar de casa, destituída de cuidado e afeto, rodeada de abusos e violência para então força-la a viver nas ruas, isso tudo para se manter livre das amarras do casamento que abandonou, da família que a queria fazer caber numa prisão, quando queria liberdade. E é aqui que a complexidade da área cinza começa a pesar.
Aos 3 anos vivendo no ashram, Antara relembra que ?não sabiam que, quando eu fechava os olhos, não conseguia identificar quem eu era, e que ficar acordada era a única maneira de conhecer os limites do meu próprio corpo?. Essa crise de identidade irá acompanhá-la por toda vida, quando Ma desenvolve Alzheimer e a esquece, relata que ?durante um momento, ela não sabia quem eu sou e, durante esse momento, eu não sou ninguém.?
É a partir desse apego ansioso ambivalente criado com sua mãe que se tece a complexidade dessa relação. Afinal a baixa disponibilidade afetiva dessa, os sucessivos abandonos e punições imotivados geram um ambiente de desamparo aprendido, de passividade, insegurança e baixa responsividade afetiva. O resultado é uma sequência de dualidades sobrepostas, ama e a odeia, quer ver-se livre dela e ainda assim não consegue ficar longe. Essa mãe vilanizada que nunca foi boa, nem maternal, mas que começa a esquecer, a ser digna de dó. Piedade que a desestrutura de medo e também de ódio, afinal, como pode esta mulher ruim ser agora perdoada e compreendida aos olhos dos outros? A Antara é exigido que dê amor e compreensão, que perdoe, que não maltrate essa mãe que já não se lembra, mas como ofertar tais sentimentos a alguém que lhe causou tanta dor?
Em seu livro de estreia, Doshi nos apresenta com primor a complexidade da maternidade e do ser mulher em uma sociedade que nos poda. Traz o realismo sincero, sem véus ou enfeites, ao passo que nos mostra que somos complexas demais para cabermos nos polos extremos de ?boas mulheres-mulheres ruins?. Por fim, traz um último recorte, a impossibilidade da liberdade, Açúcar Queimado é uma narrativa feminina, sobre vidas femininas, mas que dançam de acordo as vozes masculinas de suas histórias.