rekizone 09/12/2023
Leitores críticos fantásticos e onde habitam
Toda vez que uma fanfic é transformada em livro, creio ser de suma importância que o autor se digne a passar sua história por uma revisão e leitura crítica, não apenas modificar o nome de alguns personagens e dar o trabalho por encerrado. Isso porque às vezes, quando escrevemos sozinhos por longos períodos de tempo, podemos esquecer de coisas que foram estabelecidas no começo da narrativa ou simplesmente perder o fio da meada entre um parágrafo e outro. Como aquela cena de The Office uma vez disse, ?Às vezes eu começo uma frase e nem sei para onde ela vai. Eu só espero que encontre no meio do caminho?.
The Wolf?s Poison, infelizmente, sofre destes exatos problemas que acabei de citar, bem como vários outros que poderiam, muito facilmente, terem sido corrigidos com uma mera leitura crítica e revisão gramatical/semântica do texto. Vou pontuar os que mais me chamaram atenção de forma breve para não me estender muito no assunto, pois me sinto no dever de dar uma opinião honesta e objetiva sobre The Wolf?s Poison (ainda que ninguém tenha pedido).
1) No começo da narrativa, a autora se utiliza muito de travessões para oferecer explicações adicionais sobre os personagens e mundo ao nosso redor. Embora seja um recurso interessante de ser empregado, quando feito em demasia se torna cansativo para o leitor, que precisa constantemente pausar a leitura e abrir parênteses metafóricos em sua cabeça para adicionar informações novas;
2) As vírgulas foram empregadas erroneamente repetidas vezes durante o texto, quebrando frases de maneira que faziam com que perdessem completamente seu sentido (ex.: ?(?) dizendo ao general Bae Hyo, pai do beta, que Yugyeom de fato, havia sido atacado por uma cobra?);
3) Uso excessivo de ?ri soprado?, ?riso soprado?, ?riu soprado? e derivados. Contei ao todo 41, e estes se repetiam em praticamente todos os capítulos. Sei que é mais do que normal repetir expressões quando escrevemos capítulos de fanfics (eu própria tenho meus vícios aqui e ali), mas quando publicamos um livro é preciso estar atento para não transformar isso em algo repetitivo e cansativo para o leitor. Um leitor crítico poderia decerto ter ajudado nesse sentido, apontando coisas que não percebemos ao escrevermos os capítulos separadamente, mas que se tornam gritantes ao avaliar a obra como um todo. Ademais, é sempre bom diversificar expressões, pois mostram a habilidade do autor em descrever diferentes situações;
4) As citações no começo dos capítulos não fazem sentido, devido à completa falta de relação com a história. Por que há frases de Victor Hugo e Anne with an E em um universo em que eles não existem? Isso quebra a imersão do leitor. Compreendo fazer isso em fanfics, mas em livros publicados a história é outra. A única pessoa que vi utilizar este recurso de maneira satisfatória foi Cassandra Clare na trilogia Anjo Mecânico, mas apenas porque as citações envolviam autores da época em que os personagens também estavam inseridos e que já tinham sido estabelecidos como existentes na trama;
5) Falta de padronização no texto. A autora às vezes usa acônito, outras aconitum e noutras wolfsbane. Recomendo escolher uma e se manter com ela para deixar o texto mais limpo;
6) Uso de estrangeirismos como ?fighting? e ?true mate?, que poderiam ter sido facilmente adaptados para o português (e teriam me poupado a vergonha alheia absurda que senti enquanto lia). É mais do que compreensível as palavras coreanas utilizadas e que serviram para aproximar a história de suas raízes, mas as em inglês eram completamente desnecessárias e não se coadunavam com o espaço/tempo estabelecido na narração;
7)
7.1) Erros gramaticais e semânticos (?está? ao invés de estar, ?têm? ao invés de ?tem? etc);
7.2) Construções confusas de algumas frases e que soariam melhor se reescritas (ex.: ?acompanhados por alfas >na qual< estão interessados?);
7.3) Confusão entre tempos verbais: a narração fica intercalando entre o presente e o pretérito, ao invés de utilizar apenas um. Ex: ?(?) me FEZ [pretérito perfeito] ficar ainda mais curioso com a visita de JinHo e, sentando-me nas almofadas, VIREI-ME [pretérito perfeito do indicativo] para o alfa que conversava com meu abeoji. ? Jin! O que o traz aqui? ? PERGUNTO [presente do indicativo]?.
7.4) Além disso, cifras de música aparecem aleatoriamente no corpo do texto, as quais acredito que talvez tenham sido erro de digitação;
8) As ações de Jongkyu praticamente não têm consequências severas e duradouras que impactam o leitor e aumentam os riscos da batalha. Toda vez que ocorria algo eu sabia que as coisas acabariam bem da melhor maneira possível e isso tirava um pouco da emoção da coisa, já que não havia dúvidas quanto ao fato de que tudo sempre acabaria bem. Por óbvio não quero ditar como a autora deve escrever sua história, e também não estou dizendo que o final deve ser trágico (eu mesma sou uma grande defensora de finais felizes), mas pelo menos oferecer riscos tangíveis que deixam o leitor nervoso para ver o que vai acontecer é importante para deixar a leitura mais dinâmica e interessante;
9) Toda a questão dos ômegas e o modo como eram encarados como frágeis e submissos e, portanto, eram privados de possuírem qualquer outra forma de expressão que fosse diferente do padrão esperado. Fazendo paralelos com o machismo sofrido por mulheres desde o começo dos tempos, acredito que esse quesito poderia ter sido tratado de maneira diferente e mais sutil, mas que revela de maneira evidente como o machismo permeia nossa sociedade. Ao invés de apelar para as diferentes nuances dessa problemática, porém, a autora utiliza uma abordagem muito direta e insatisfatória. Machismo (e opressão) são muito menos sobre dizer a alguém (no caso do livro), ?Você é um ômega e portanto deve calar a boca e não fazer nada? e muito mais sobre apaziguar ânimos e dizer, ?Tudo bem, eu entendo que você se sinta dessa forma, mas soldados treinados [exclusivamente homens alfa/beta] irão cuidar do problema! Sei que ômegas são criaturas generosas por natureza [sexismo], mas não precisa ficar tão irritado quanto a isso [gaslighting]! Que tal fazermos o seguinte: enquanto nós treinamos, você ajuda o resto da alcateia a se proteger já que ômegas possuem mais sensibilidade que nós alfas, o que acha? [sexismo, reafirmação de supostos papéis de gêneros etc]?. Acredito que teria tornado o problema mais complexo do que apenas diretamente dizer ao Jongkyu que ele era um ômega e por isso não poderia contribuir em nada. Demonstraria também que o machismo/sexismo possui muitas faces e manifestações, e que às vezes temos atitudes inerentemente machistas sem nem perceber devido a própria sociedade;
10) Teria sido infinitamente mais interessante mudar o nome dos países onde a história se passa do que deixar com os nomes originais do nosso mundo (Japão, Coreia do Sul/Norte, o continente da Europa etc). Além de dar mais liberdade ao autor para explorar seu mundo de fantasia sem ficar preso às amarras do que nós entendemos do mundo real, fica mais palatável para o leitor ler a história assim. R. F. Kuang fez algo parecido ao criar um mundo de fantasia ao redor da história da China, mas modificar os nomes dos países para Império de Nikara (China), Federação de Mugen (Japão) e Speer (Taiwan).
Gostaria, por fim, de parabenizar a autora por ter conseguido escrever uma história tão grande (e com mais três livros, pelo que observei), com foco e determinação, bem como com um público fiel que parece adorar tanto seus personagens. Não desejo, de forma alguma, desmerecer um autor nacional e independente, mas também não acho que seja justo fingir que o livro é isento de quaisquer problemas.
Lerei os próximos exemplares pois acredito verdadeiramente que o enredo seja interessante e digno de ser explorado mais à fundo, e espero observar o crescimento da autora nos livros que estão por vir. Sem sombra de dúvidas, é apenas com tempo e prática que aperfeiçoamos nossas habilidades, e estou esperançosa para ver como G.S.C Vanny vai se sair nesse quesito.
Gostaria de elogiar, ainda, a identidade visual do livro e as ilustrações feitas, que refletem o cuidado e o carinho da autora e do artista pela obra. Decerto foram uma das coisas que mais me chamaram a atenção desde o começo.
Encerro minha resenha apenas com o pequeno conselho de que, quando publicamos nossas histórias, em especial aquelas que derivam de fanfics, devemos fazer as adaptações e correções necessárias não apenas para manter os leitores antigos, mas também para atrair e cativar os novos (tal como Ali Hazelwood fez com A Hipótese do Amor, uma antiga fanfic Reylo).
Como uma fanfic, The Wolf?s Poison atinge de maneira notável seu propósito; contudo, como livro independente, com personagens novos/inéditos e que devem cativar o público que nunca antes teve contato com o material original, ele se ergue sobre uma fundação ainda muito fraca e incerta.