Lucas 26/09/2016
Um bom “achado”
Na trajetória de leituras de um leitor mais compulsivo, ele sempre se depara com diversos tipos de obras, no que diz respeito ao prévio fascínio e expectativa que geram. Algumas obras geram imensa expectativa (que muitas vezes não são cumpridas), outras são antecipadamente vistas com potencial e acabam virando eternos na vida de quem lê, etc. Há também os livros que são desconhecidos (especialmente no Brasil), mas com uma sinopse promissora, que fazem o leitor encará-los sem muita ansiedade.
Nessa divisão "didática" rudimentar, Caim e Abel encaixa-se perfeitamente no último grupo. Escrito pelo inglês Jeffrey Archer (desconhecido do público nacional, mas muito relevante na crítica literária britânica) e lançado em 1979, o livro trata da rivalidade de dois indivíduos, nascidos no mesmo dia do ano de 1906, mas em realidades completamente diferentes. A partir disso, a narração intercala quase que de uma forma simétrica a trajetória destes dois elementos, desde seus primeiros dias: um capítulo discorre sobre um dos protagonistas e o seguinte conta algo sobre o outro e assim sucessivamente.
Como todo bom suspense, Caim e Abel é difícil de ser abandonado. A leitura flui bem, aliada à mencionada simetria narrativa dos capítulos. Além disso, ao ambientar basicamente a história no leste europeu (berço do comunismo) e nos Estados Unidos (berço do capitalismo), Archer acaba fazendo um relato minucioso das imensas transformações dessas duas correntes antagônicas, ocorridas durante a trajetória dos protagonistas. O auge do capitalismo e sua crise (a "Grande Depressão" em 1929) e a Revolução Russa de 1917 e suas consequências (não tão positivas) são acontecimentos narrados na obra e que trazem uma influência muito grande na vida e no comportamento de Caim (que na verdade se chama Kane, mas a "força" da tradução fez essa adaptação ao português) e Abel (cuja pronúncia deve ser mais forte na primeira letra, em função da origem do personagem. Estas duas ressalvas retiram completamente qualquer referência bíblica que estes nomes podem provocar).
O grande mérito da narrativa é justamente este: trazer e analisar grandes fatos reais do século XX e discorrer sobre as consequências deles na vida dos protagonistas e dos seus negócios. Não só o "crack" da Bolsa de Nova York, mas também as duas guerras mundiais possuem uma importância fundamental na narrativa. Até mesmo questões atuais, como correntes migratórias, são desenvolvidas. As táticas comerciais de cada protagonista, as negociações e arranjos para a conquista do poder e as maquinações que cada um faz para derrubar o outro, correspondem a uma boa aula de gestão privada moderna. O capitalismo permite a ascendência das classes, mas é preciso que os diversos mecanismos que o compõem sejam compreendidos, pois a derrocada, quando ocorre, é muito mais intensa e rápida do que qualquer ascensão. Caim e Abel, mesmo que indiretamente, ajuda a entender estes mecanismos, residindo neste entendimento o principal cerne do livro.
No entanto, a obra sofre com alguns modismos e previsibilidades. Sem que grandes acontecimentos da narrativa tenham o rótulo de "clichê" (adjetivo mais usado da atualidade para rotular qualquer coisa de ruim ou inútil, muitas vezes sem razão para tal), o autor conduz alguns personagens ao "sabor" da história, e sob a influência dela, o destino de tais personagens adquire um caráter dedutível. Um exemplo disso se refere a um personagem, que vai a Londres por volta de 1912 e precisa retornar rapidamente aos EUA. Como não haviam muitas rotas de navio na época, fica claro ao leitor mais bem informado o destino que este personagem terá, antes que isso seja elucidado (e isso não será detalhado aqui para que se evitem spoiler´s). Este fato, associado ao excesso de "cinematografia" faz com que Caim e Abel se pareça, em alguns momentos, com algum livro de Dan Brown ou Sidney Sheldon: finais de capítulo "forçados", com um desfecho rápido e uma frase seca, com o intuito de soar inesperada, etc. De todo modo, tachar o livro de ruim com estes argumentos é inválido: é o tipo de literatura policial que prende a atenção do leitor, e, além disso, em 1979, o mundo certamente desconhecia o sentido de ser "clichê".
Sem mais ressalvas, Caim e Abel cumpre bem o seu papel, o de entreter. Por mais que a obra tenha problemas, ela não gera frustração, pois alcança a pequena expectativa prévia que se gera com ela, além de trazer diversos ensinamentos para o mundo dos negócios, com um desfecho interessante, mas não totalmente imprevisível.