spoiler visualizarwhozlis 12/09/2022
Acredito que essa seja uma das resenhas mais difíceis de se fazer até o momento; não só pela complexidade do livro em si, mas pela convicção de que nunca seria capaz de passar adiante com eficiência todos os sentimentos que esse livro me incitou durante essa leitura (super extensa, dura e muito necessária, por sinal). Aviso desde já que além dos temas pesados apresentados nessa trama, cito aqui também um acontecimento de uma parte bem avançada da história (é importante que eu cite, prometo). Então, se qualquer tipo de spoiler te incomoda, peço que abandone a leitura dessa resenha por aqui mesmo.
Ok, do início. Quando descobri Manhunt, o que me chamou a atenção foi especificamente o caráter pós-apocalíptico da história. A ideia de uma realidade onde a testosterona transforme humanos (majoritariamente homens cis, mas há também mulheres com disfunções hormonais citadas na trama) em predadores irracionais, que vivem pelo instinto de caçar e abusar sexualmente de tudo que se move, me aterroriza e fascina ao mesmo tempo. De início eu nem imaginei o tapa moral que esse livro me daria, até a descoberta da polêmica que o lançamento desse livro gerou me acender um alerta de imediato.
Aqui, acho importantíssimo lembrar de alguns fatos: sim, é uma história de horror feminista. Sim, é uma história sobre violência contra a mulher, sobre estupro e sobre discriminação. Mas é, especialmente, uma história sobre exclusão e marginalização da comunidade trans, inclusive na falta de representatividade midiática (aqui, especificamente, no protagonismo e no contexto de histórias pós-apocalípticas baseadas em gênero) e sobre opressão. Obviamente o apagamento da comunidade se estende por muitos outros gêneros, ficcionais ou não, então essa discussão não morre aqui. Mas é aqui, também, que a polêmica se inicia.
Quando já tinha esse livro adicionado às minhas leituras futuras é que descobri sobre o burburinho que ele causou lá fora. Citações avulsas sobre TERFs (radfems, no nosso contexto) e até sobre uma J. K. Rowling fictícia me deixaram um tanto apreensiva de início; os artigos faziam parecer que o livro inteiro seria centralizado na morte de uma Rowling ainda autora (e ainda absurdamente transfóbica) e presente nesse universo, fato que não me desanimava a ler mas que me fez acreditar por um momento breve que a história seria rasa, vazia, com mais de 300 páginas sobre um único acontecimento fútil. Mas a verdade é que tal cena mal cabe em um parágrafo e Manhunt tem raízes muito mais profundas do que isso (e trabalha a discriminação com uma excelência que qualquer um desses artigos radicais jamais seria capaz de fazer).
Beth e Fran são duas mulheres incríveis que mesmo num contexto de crise e com a carga imensa dos próprios traumas e agressões sofridas se sobressaem e são imensamente fáceis de se identificar. Mesmo sendo uma mulher cis me senti muito bem representada nos questionamentos constantes e torturantes das protagonistas sobre o que nos faz de fato mulheres; é propositalmente desconfortável e foca nas mazelas que, acredito eu, muitas mulheres consigam se encontrar numa identificação desconcertante. Saí de coração apertado de cada parágrafo em que qualquer um desses protagonistas duvidada do próprio valor e questionava a validação da sua feminilidade (masculinidade no caso do Robbie, homem trans e também protagonista dessa história), ainda que muito feliz pela aproximação sem nenhum remorso da autora nesse quesito. Gretchen não teve absolutamente nenhum receio de ressaltar diversas vezes que biologia nunca definiu e continuará não definindo gênero e que também não atesta em nenhuma circunstância o valor do ser humano.
É uma história difícil de se ler pela crueza da realidade que ela retrata, mas também por diversos outros elementos aqui presentes. É uma história densa, rica, que causa muito desconforto pelas descrições e citações transfóbicas, pela misoginia estrutural, pelas falhas morais, pela disforia, pelas cenas de violência física, pelo gore e pela carga emocional. A terminologia usada por parte das personagens mais radicais machuca mesmo quem não se vê no outro lado da opressão, a violência gráfica e física dói e a emocional perturba. Mas é necessário demais, especialmente pra quem ocupa o lugar de ouvinte nessa problemática toda, encontrar nessa trama a mensagem mais importante: sobre apoio, proteção e legislação à favor da comunidade trans.
É uma leitura difícil de caber toda aqui e que apesar de muito sensível eu recomendaria com muita cautela. Pra quem já sofre a violência bruta descrita aqui no mundo real, reviver cada detalhe dessa ficção opressora talvez soe só como tortura. Ainda sim, a quem também está aqui pra ouvir e oferecer apoio, é uma ferida necessária a ser aberta, tocada e remexida.