Paulo 26/12/2023
Essa é uma daquelas histórias que vão versar sobre a nossa visão sobre o que é o outro lado e o que se encontra lá. Na história, Gabriel, um garoto que vive em uma aldeia bretã, acaba atravessando um rio que fica nos limites da região. Um lugar em que todos os habitantes dizem ser probido ultrapassar porque esconde forças malignas que podem corromper o espírito. Ao estar do outro lado, Gabriel se depara com várias criaturas metade lobo e metade homem e vice-versa até que é encantado por uma jovem de cabelos loiros. Esta o cativa com seu charme e lhe dá uma flor azul para quando ele retornar para casa. Seus pais, entendendo o significado daquela flor azul, a jogam longe. Mas, parece ser tarde demais. O garoto foi ao outro lado e parece que o outro lado não sairá mais de seu coração. O que isso significa?
Esta é uma narrativa que mescla um conto cautelar com uma história de terror. O autor procura construir inicialmente o temor que existe sobre o que os moradores da aldeia imaginam que exista do outro lado do rio. A gente percebe logo no começo que Gabriel será aquele que romperá as tradições e desobedecerá os mais velhos. Tendo construído a noção de que o outro lado é perigoso, o autor nos leva até lá junto de Gabriel para explorarmos o lugar. Para mim, Stenbock falhou na ideia de construir uma tensão para causar o medo. O que ele consegue é horrorizar o leitor da época ao apresentar criaturas que vão contra a noção de pureza e moralidade. O lobisomem representaria a desconexão do indivíduo de seu grupo social. Ao adentrar em um local profano, Gabriel se colocou como alvo de seres terríveis e horrendos, que apenas seguem sua selvageria e não conseguem ser mais capazes de viver em sociedade. Entretanto, o outro lado representou para o personagem uma sensação de fascínio e de liberdade, fora das regras de convivência em sociedade.
A noção de outro lado é óbvio que vai redundar em uma separação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Só não entendi muito bem por que o autor inseriu uma figura lendária como o lobisomem, que representa o aspecto mais primitivo do homem, como um "guardião" ou um "habitante" deste lugar. Só posso imaginar que tenha algo a ver com o aspecto do sobrenatural, do lunar. A flor azul que aparece na narrativa é ligado ao fato de que estas flores são raras na natureza (pelo menos no que diz respeito ao surgimento natural das mesmas; hoje elas são cultivadas através de enxertos e outras técnicas de floricultura). Seu simbolismo tem a ver com a passagem para o mundo dos mortos. Ela estaria no limiar entre este mundo e o outro. O fato de que quando outras pessoas tocavam a flor e ela queimava era porque estas pessoas estariam vivas enquanto Gabriel estaria atravessando para o outro mundo. Já a ideia do mundo dos sonhos e das visões que o personagem tem, vou deixar para que os leitores leiam a narrativa para poder entender o que significam. Não se preocupem: nas duas últimas páginas do conto tem a explicação direitinho.
Para não terminar esta resenha sem dar a minha opinião sobre a história: não gostei. A escrita de Stenbock é um pouco confusa e ela vai para um lado, mas a interpretação que temos da história segue para o outro. O aspecto do terror só funciona mesmo para o leitor da época enquanto que para o leitor contemporâneo assume um papel mais de curiosidade. Ele tenta enveredar para uma abordagem cristã e até brinca com alterações profanas de trechos bíblicos, mas não vai muito longe nisso. Ele poderia ter explorado mais um ostracismo do personagem ao ter explorado aquilo que era considerado proibido e ser julgado pelas pessoas de sua aldeia. Isso provocaria ainda mais a passagem do personagem para o outro lado como uma revolta contra aqueles que mancharam sua imagem ou sua honra. A ideia da história cautelar funcionaria para fazê-lo se arrepender de suas ações e perceber como as pessoas estavam certas. Claro, esotu buscando me colocar mal e porcamente como um leitor da época e a partir das mentalidades vigentes no século XIX. Enfim, uma boa história, mas serve mais como curiosidade para ver como os autores da época enxergavam o mundo dos mortos e a figura do lobisomem.
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