jota 29/03/2016O não-livro de OswaldAs obras de Oswald de Andrade (1890-1954), assim com as de Mário, são fundamentais para o entendimento do movimento modernista nas letras. Além do Macunaíma de Mário, outros dois livros de Oswald, Memórias Sentimentais de João Miramar e este que terminei de ler, Serafim Ponte Grande, constam de todas as listas dos livros brasileiros mais importantes do século XX.
Serafim foi escrito entre 1925 e 1929 e publicado em 1933. É tido pelos críticos como uma grande paródia literária em forma de colagem (como o cubismo na pintura), com textos curtos, frases, cartas, poemas e anedotas, abrangendo uma miscelânea de estilos e gêneros literários poucas vezes vista na literatura brasileira. E que depois inspirou o tropicalismo de Caetano, Gil e outros músicos da década de 1960.
Acompanham esta edição ensaios de Haroldo de Campos, Antonio Candido e Mario da Silva Brito. Mais do que analisar Serafim, Brito desenha um perfil de Oswald de Andrade. Por seu lado Antonio Candido considera a obra, por conta de sua estrutura fragmentada, um fragmento de grande livro. Campos vai mais longe, pega essa ideia e a reelabora: "o Serafim é um grande não-livro de fragmentos de livro."
O texto de Haroldo de Campos é complexo, com referências a James Joyce, Laurence Sterne, Claude Lévi-Strauss e outros autores, mas ao mesmo tempo elucida diversas passagens de Serafim Ponte Grande. Oswald faz referências a tipos, lugares, coisas e fatos passados há mais de oitenta anos e também é extremamente criativo, inventa palavras etc: podemos nos perder no meio desse singular edifício narrativo, do mesmo modo que podemos nos perder em Sampa.
O que Oswald faz o tempo todo é justamente tentar implodir o edifício narrativo tradicional, conforme aponta Campos. Ele afirma que o tema central do livro é "o da libertação: seja das normas narrativas tradicionais, seja da sociedade castradora, tíbia, enraizada em valores falidos." Daí que o volume é pontuado pela comicidade e pelo grotesco, por observações cáusticas, ironia, trocadilhos e muitos palavrões. E, claro, pelo uso de metalinguagem.
A certa altura Serafim, funcionário público do saneamento (referindo-se a São Paulo ele diz: "A paisagem desta capital apodrece"), vendo que seu secretário (que atende pelo nome de Pinto Calçudo) domina uma roda de conversas, produzindo balbúrdia e riso, logo que se vê sozinho com ele grita-lhe: "Diga-me uma coisa. Quem é neste livro o personagem principal? Eu ou você?" E por aí vai...
Claro que não é o tempo todo que a leitura de Serafim Ponte Grande se faz interessante assim; ela representa um desafio para o leitor acostumado com narrativas tradicionais, mas vale a pena conhecer esta obra-prima do modernismo brasileiro, sem dúvida.
Lido entre 27 e 29/03/2016.